domingo, 8 de maio de 2016

As pequenas virtudes no país das maravilhas


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Descrição afetiva da imagem: Um conjunto de cartas de baralho, viradas de costas mostram desenhos em cor vermelha. São 16 cartas, em 4 colunas com 4 cartas cada uma. É uma capa de livro. Uma das cartas, no entanto, está virada e é de paus. Como uma janela que se abre, ela nos permite ver os olhos verdes, o nariz afilado e os belos lábios de Alice. É ela quem nos espreita. Estaríamos todos nós num país das maravilhas?

Cheguei em casa e encontrei um pacote dos correios em cima da mesa. Pelo formato da embalagem logo concluí que eram livros. Ou melhor, o livro que eu havia comprado on line: Natalia Ginzburg, Pequenas Virtudes, publicado pela recém extinta Cosac e Naif. Aguardava o livro com curiosidade, aguçada pela belíssima resenha que lera em um jornal literário. Olhei o destinatário que constava na embalagem na certa de que ali veria meu nome. Para minha surpresa, o nome que estava no papel era Waldomiro Silva. Que estranho, pensei. Deve ser algum vizinho. Examinei cuidadosamente os escritos que vinham na frente do pacote. O remetente era a Cosac, logo, meu livro! Mas Waldomiro? O que será que fazia Waldomiro naquele papel? O endereço era o meu, a rua, a casa, o CEP e o telefone, tudo me ligava aquele embrulho, à exceção do nome. A primeira providência que tomei foi interfonar para a portaria e perguntar se havia entre os vizinhos algum Waldomiro Silva. Não havia. Hesitei diante do pacote, sem saber o que fazer com ele. Decidi abri-lo, ponderando que com tantas informações concernentes à minha vida, talvez, em alguma medida, o volume me pertencesse. Cuidadosamente abri a caixa, sem rasga-la, mantendo intacta a etiqueta com as informações do remetente e do destinatário. Eram dois volumes: Alice no país da maravilhas e Alice através do espelho de Lewis Carroll, em um único livro; e A Metafísica do Belo, de Schopenhauer. Huumm, bom gosto tem Waldomiro! Até gostaria de conhece-lo! A edição de Alice era lindíssima, o próprio livro já uma obra de arte. Papel de primeira qualidade, gravuras coloridas e  belíssimas, excelente tradução e um cheiro maravilhoso! Sim, sou daquelas que cheiram livros e me seduzo também por livros cheirados. Folhei Alice, li umas partes e voltei a encantar-me com a obra, lida por mim tantos anos antes. Adormeci inebriada com o presente que me chegara às mãos. No dia seguinte de manhã, liguei para a Editora para desfazer o mal entendido e  remeter ao Waldomiro - já o sentia como um amigo - os livros que lhe pertenciam. A Cosac estava em clima de fechar as portas e o telefonema foi pouco efetivo. De atendente em atendente não cheguei a lugar algum. Não havia registros de Waldomiro Silva na Cosac. O que fazer? Uma das funcionárias da editora comentou das dificuldades com os fins, eles são mesmo sempre delicados, na vida e na editora. Pediu-me que aguardasse, anotou meu telefone e disse que me ligaria em seguida. Não ligou nunca mais. E também seria nunca mais - ou quase - o que se passaria entre mim e Pequenas Virtudes. Nunca mais o veria embrulhado num pacote em cima da mesa da sala, foi o que imaginei. Passados mais de três meses, o livro da Natália Ginzburg não havia chegado. Nas agilidades do mundo on line, mais de três meses correspondem sem dúvida, a nunca mais. Resolvi aceitar o acontecido. Então era isso, quis o destino que eu ficasse com Lewis Carroll e Schopenhauer e, quem sabe, outra pessoa (Waldomiro?) com Natalia Ginzburg. Aceitei o ocorrido, acolhi aqueles dois livros como se eu os tivesse desejado desde o início e deixei que o destino me fizesse ler Natalia Ginzburg algum dia, de algum modo. Eis que passados mais de quatro meses desde o dia em que fiz a compra on line, recebo uma ligação no meu celular. É a Marcia Moraes quem fala? A voz era de uma mulher. Sim, Marcia Moraes. Quem é? E a resposta veio singela: Sou Alexandra e estou com um livro seu. Livro meu? Estranhei, pensei que fosse uma pessoa conhecida, quem sabe com um livro emprestado, decidida a me devolve-lo. Alexandra? perguntei, puxando pela memória sem nada encontrar. Sim, Alexandra, mas você não me conhece. Você não comprou um livro chamado Pequenas Virtudes? Ah! Pequenas Virtudes! Meus olhos se encheram de vida e alegria! Sim, sim, comprei, mas ele foi extraviado, sumiu. E ela me disse: Não sumiu não. Eu o recebi e estou com ele aqui. Fiquei intrigada e perguntei: Ué, mas como você me achou? Na embalagem havia meu nome, telefone, todos os meus dados, à exceção do endereço, que era o da Alexandra! E foi assim que Pequenas Virtudes chegou-me de volta às mãos, mais uma vez por uma decisão do destino, cujos percursos e voltas me eram enigmáticos. Li e encantei-me com as narrativas precisas de Natalia Ginzburg. Alegrei-me quando soube que Alexandra o lera antes de me devolve-lo, por isso a demora no contato para me devolver o livro. Alexandra também aceitou o que o destino lhe colocou nas mãos! Fiquei, no entanto, com um problema. O que fazer com os livros que recebi no nome do Waldomiro? Devolve-los não era possível, não consegui achar o Waldomiro. Envia-los de volta à Cosac talvez não os colocassem nas mãos de leitores desejosos por suas linhas. Foi então que decidi que os daria de presente a leitores cujas paixões pelos livros, pelas histórias, pela filosofia, pelo que há de belo nas voltas do destino eram tão intensas quanto as minhas e talvez - eu preferi pensar que sim - as de Waldomiro. Assim, os livros encontraram outras mãos, outros olhos, mas mantiveram-se entre os amantes da literatura, como Waldomiro e eu. Em todos esses encontros desencontrados quem sabe não foi a vez dos livros caírem num buraco rumo a um país das maravilhas no qual os personagens somos nós, Alexandra, Waldomiro, eu, os presenteados? Quem sabe?

sábado, 7 de maio de 2016

O amor pelos livros


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Descrição (afetiva da imagem): Tempos atrás fui ao MAM, no Rio de Janeiro, para uma exposição de Waltércio Caldas chamada "Livros". Inesquecível, a exposição mostrava livros como obras de arte, belas obras de arte, inusitadas, lindas, davam a ver o que não sabíamos que podiam ser e fazer os livros. A imagem acima é uma obra dessa série de Caldas. É um livro de acrílico esverdeado, transparente. O livro de acrílico não tem folhas, nem páginas. Na capa lemos o que também é o título da obra: Como imprimir sombras. Refletidas pela transparência, as palavras, ou suas sombras, podem ser lidas também na capa de fundo do livro. É que talvez os livros façam existir esses possíveis, esses talvez óbvios possíveis que não vemos, não fosse a simplicidade e a genialidade do artista.

Num telejornal qualquer, tempos atrás, assisti a uma entrevista. A repórter apressada corria atrás de um homem bem vestido, que parecia se esquivar daquela abordagem. Ele se detém por um minuto, corpo tenso indicando que o impulso era sair logo dali. O homem era um dos donos da Editora Cosac e Naif que acabara de encerrar suas atividades no Brasil. As perguntas de sempre eram dirigidas ao homem e as respostas também de sempre não diziam nada que as manchetes dos jornais já não estampassem: a crise econômica não dava tréguas. Não cheguei a me ligar naquele jogo banal de perguntas e respostas, mas fiquei ali, jogada no sofá, entregue ao meu próprio pesar pelo fim da editora, cujos livros eu admirava, comprava, lia. Eram livros para quem gosta de livros, para quem gosta de ler, para quem gosta de arte. E eu me incluo no grupo dos que tem esses gostos. De modo inesperado, uma pergunta da repórter suspendeu o imediatismo das respostas, produziu um silêncio do entrevistado e foi justo esse silêncio que eu ouvi. Eduardo Coutinho dizia que o silêncio depois de uma fala é a coisa mais importante de se ouvir. Eu ouvi. A repórter pergunta ao homem: o que é que permanece depois de todos esses anos de atividade da editora Cosac e Naif? O que fica de toda essa história? O homem cala. Eu calo com ele. Estou inteira ao lado dele. O silêncio. A correria da repórter foi detida por aquele silêncio. Sem dizer palavra, os olhos do homem bem vestido ficam molhados. Ele abaixa a cabeça, o microfone permanece diante de sua boca. É um tempo precioso, 30 anos de atividade da Cosac, de algum modo, apareciam nos 30 segundos de silêncio. Apareciam com força, rasgavam a cena, me pregavam naquela suspensão. O homem levanta os olhos, já adianta os passos para se retirar daquele encontro e diz: fica o amor pelos livros. Da poltrona onde estava deitada, partilhei com ele aquele amor e o vi partir, bem vestido, naquele dia chuvoso.