terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Do outro lado tem a beirada: os mal entendidos na nossa língua


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Descrição da imagem: Capa do livro de Amyr Klink, Cem dias entre Céu e Mar. Num fundo todo azul claro se lê o nome do autor, o título do livro. Em seguida um desenho pequeno, fino, delicado, em tons de vermelho: um barquinho à remo, com um homem sentado em seu interior, segurando dois remos, que mais se parecem palitos para comer comida japonesa (de tão delicados e finos!). A imensidão do azul claro do fundo da capa se contrasta com a pequenez do barco que no entanto, por ser vermelho, parece cheio de vida e força!


Não são poucas as vezes em que grupos de amigos brasileiros comentam os mal entendidos que vivem quando encontram com os parceiros de idioma, os portugueses. Foi numa dessas rodas de conversa que ouvi uma história, entre muitas outras que seguem esse mesmo tom:
Num restaurante em Portugal a pessoa se dirige ao garçom e fala:
- Tem suco de laranja?
E o delicado garçom  responde:
- Não, o suco não temos. Temos as laranjas, podemos fazer o suco.
Os lusitanos parecem tomar ao pé da letra o que nós, brasileiros, dizemos num sentido mais figurado. Daí toda a graça dos mal entendidos. Considero, no entanto, que os mal entendidos grassam é por toda parte e nem precisamos sair do Brasil para vivê-los. Talvez porque nosso país é um continente, não só no tamanho, mas também nos costumes, na música tão variável que se impõe ao português em cada canto do país, nas tradições, na culinária, enfim, cada canto do Brasil é um universo de diferenças, sutil e fragilmente costurado pela nossa identidade linguística. 
Lembro de uma viagem que fiz a Belém do Pará, para participar de um congresso. Lá estavam vários colegas de trabalho, alunos, amigos, era uma festa aquele encontro. Foi num táxi que dividi com a querida amiga Jo Conti que vivi alguns diálogos surreais e bizarros. No caminho que fazíamos ao Museu Goeldi, olhávamos o rio que cruza a cidade. Nunca tínhamos visto um rio tão tão largo! Parecia um oceano! Ficamos encantadas com a beleza daquele rio! Extasiada, Jo, que fazia sua primeira viagem para tão longe do Rio de Janeiro, pergunta ao taxista:
- Que rio largo! O que é que tem lá do outro lado?
E o taxista responde bem honestamente:
- A beirada. Do outro lado tem a beirada.
Jo e eu nos entreolhamos e rimos da resposta do taxista. Resposta correta e certeira, se pensarmos bem no que lhe foi perguntado! Jo, curiosa e completamente disponível para a conversa, segue na prosa com o taxista:
- O que é que tem para se fazer aqui, moço?
E o taxista, mais uma vez, direto e objetivo responde:
- Aqui tem peixe, tem jambu, o pessoal faz tacacá muito bem feito, tucupi, aqui tem maniçoba. Só comida boa. A senhora já comeu o peixe com jambu? Comeu não, foi?
E ele seguiu dando a receita do peixe e falando de mais mil e um pratos dos quais nós jamais tínhamos ouvido falar! Jo e eu rimos de novo! Então tem muita comida para se fazer aqui, que bom, vamos experimentar de um tudo nessas terras, foi o que pensamos! A viagem ficou mais leve e divertida com a prosa que levamos com o taxista! 
Na recente viagem que fizemos à Bahia, eu, o nego e o garoto vivemos alguns desses mal entendidos. Deliciosos mal entendidos! A Bahia tem praias de águas quentes, o que considero uma mágica legítima e verdadeira! Banho de mar em águas calmas, transparentes e quentes! Ah, a Bahia! Nas praias em que estivemos, além dessas águas mágicas, havia quiosques onde se alugavam cadeiras e barracas. Assim, era possível sentarmos à sombra, na beira da praia. Alugamos essas cadeiras e barracas alguns dias, nas praias que frequentamos no entorno da nossa pousada. Num dos dias da viagem, resolvemos conhecer outras praias e fomos mais longe, há uns 30 quilômetros de onde estávamos hospedados. Chegamos a um lugar belíssimo, Itacimirim, eternizado no livro de Amyr Klink, Cem dias entre céu e mar, por ser o lugar onde ele aportou quando veio de barco a remo da África ao Brasil! É nesta praia também que está o Bar e Buteco do Doró, também eternizado no livro de Amyr Klink! É preciso lê-lo para saber do recado a ser transmitido ao Doró, dono do buteco bem na beirinha da praia. Como amo esse livro, emocionei-me por estar ali, vibrei como se fosse eu a chegar da África, após cem dias de céu e mar! Meu nego foi logo buscar cadeiras e barraca para nos acomodarmos. Estávamos em frente ao Bar e Buteco do Doró, entre o quiosque Cabana da Franga Fogosa e o Bar Deus e as Águas! A Bahia também sabe nomear seus espaços de prazer! Logo fomos recebidos por um jovem, chamava-se Junior. Ele nos disse que trabalhava no quiosque em frente, se quiséssemos a cadeira era só falar com ele. Meu nego, então, querendo saber o preço das cadeiras, pergunta a Junior:
- Como é o esquema de pagamento das cadeiras aqui?
E Junior responde com clareza, para não deixar margem para dúvidas:
- É assim: o senhor me dá o dinheiro, vou lá no quisoque, faço o pagamento das cadeiras, volto e devolvo o troco para o senhor. Aqui funciona assim mesmo! É bem assim!
Rimos com a simpatia e a honestidade de Junior. Meu nego perdeu um pouco o rebolado, não sabia direito como dar seguimento àquela prosa. Olhou para mim e disse: Viu, Marcia? Aqui funciona assim! E eu logo disse ao nego:
- Vamos sentar aqui meu nego, vai dar tudo  certo! A gente paga, Junior traz o troco para a gente! Senta aí, relaxa! Brigada Junior, muito obrigada!
Pronto! Junior abriu-se em sorrisos, seguiu correndo para atender outro freguês e explicar o esquema das cadeiras na praia!
Meu nego, eu e o garoto ficamos ali, entre a Franga Fogosa, Doró, Deus e as Aguas, Junior, Amyr Klink, águas quentes, aquilo tudo que só a Bahia tem! O preço das cadeiras? Ah, era o mesmo cobrado nas demais praias, deu tudo certo! 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Para o fim de ano: Jorge Luis Borges

Garatujas do Cotidiano se despede antecipadamente de 2015. Faltam alguns dias para o recesso e para as férias. E desses tempos de entretempos, todos precisamos! Até a volta!

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Descrição da imagem: 
Foto de Jorge Luis Borges, como um busto. O autor está sorrindo, com as mãos pousadas sobre a bengala. A foto tem uma energia boa.

FIM DE ANO
Jorge Luis Borges

Nem o pormenor simbólico
de substituir um dois por um três
nem essa vã metáfora
que convoca um lapso que morre e outro que surge,
nem o cumprimento de um processo astronômico
atordoam ou minam
o planalto desta noite
e obrigam-nos a esperar
as doze irreparáveis badaladas.
A causa verdadeira
é a suspeita geral e confusa
do enigma do Tempo;
é o assombro em face do milagre
de que apesar de todos os acasos,
de que apesar de sermos
as gotas do rio de Heraclito,
perdure em nós alguma coisa:
imóvel,
alguma coisa que não encontrou o que procurava.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O vozeirão de jaleco: cada ano é um ano

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Descrição da imagem: A figura é de uma charge. Um homem careca, de óculos e jaleco faz um exame de imagem numa boneca matrioska, que está deitada. O homem segura uma parte do equipamento do exame sobre a barriga da boneca, com a outra mão toca o teclado do equipamento e olha para a tela. Nesta última, o que se vê não é imagem do corpo da mulher, mas a reprodução da cena que vemos: o homem de jaleco olhando a tela, a boneca deitada.  E na tela que está na tela, a cena se repete. Assim, a cena vai se repetindo ao infinito, lembrando George Perec, em A Coleção Particular, leitura que recomendo. A própria imagem é como a matrioska, a boneca russa: uma dentro da outra, sem fim, se repetindo.


Já rendi homenagens à Fernanda Torres pela escrita do texto "Calores" (ver aqui). Pois hoje reitero as reverências. Fui fazer exames de imagem, todos de rotina para uma mulher como eu, já quase nos 50 anos. A chegada ao laboratório onde faria os exames foi marcada pela descontinuidade: do calor tropical das ruas ao inverno glacial daquele local branco, ladrilhado, cheio de gente e com vários balcões e recepcionistas. Num balcão recebo a ordem: apresente a carteira do plano de saúde; em outro, assine um papel, suba uma escada; mais uma sala, outro balcão, mais uma ordem. Fui seguindo o fluxo, arrepiada com a temperatura glacial emitida pelos gigantescos aparelhos de ar condicionado que estavam em todas as salas. Finalmente, depois de um périplo de balcões e recepcionistas, cheguei à sala de exame e foi neste local que encontrei o vozeirão de jaleco. Deitada numa maca, pronta para o exame, ouço um sonoro, grave e alto: BOM DIA, SRA. Levei um susto com aquela voz grave. Era um rapaz, talvez entre os 35 / 40 anos, que entrava na sala para fazer o exame. Um pouco careca, de óculos, vestindo o jaleco branco, o rapaz tinha um vozeirão que combinava pouco com a sua figura. O exame se inicia com o lançamento de um gel sobre a  minha pele, para que o equipamento de imagem funcione melhor. O gel estava mais ou menos à temperatura de - 20 graus, o que acrescido do gélido da sala, gerava uma temperatura de - 40 graus! Cheguei a comentar com o vozeirão de jaleco que o ar era muito gelado e ele me disse que os equipamentos precisam dessa temperatura. Logo imaginei que o equipamento também precisa da temperatura do gel. Tudo bem, há que se fazer algumas concessões aos equipamentos. Segue o exame, o vozeirão quase não fala, olha para a tela do computador, toma notas, olha para tela, arrasta aquele aparelho no meu corpo e assim seguimos. Até que o vozeirão conclui algo: A SRA. É UMA MULHER HORMONALMENTE ATIVA. Bingo! Foi o que pensei, já supondo que isso devia ser comemorado. Nem sabia que daquele exame poderia sair a minha aprovação hormonal. Mas o vozeirão não encerrou neste ponto as suas conclusões, seguiu num brado retumbante:  É, SRA., MAS DAQUI PRA FRENTE, CADA ANO É UM ANO, SÓ PIORA! TEM QUE ACOMPANHAR! Cacildes, estarrecida, emudeci. Que destino me foi traçado, ali na lata, na cara, o vozeirão de jaleco me fez saber que daqui para frente, só há piora. O que? Eu? Meus hormônios? A vida? O Brasil? Um pouco de tudo isso? Não consegui dizer palavra. Terminado o exame, fiz o percurso reverso, desci escadas, revi de trás para frente os balcões, as recepcionistas, a montoeira de gente e finalmente alcancei a rua. No lugar da descontinuidade que marcara minha chegada àquele mundo de ladrilho, experimentei um delicioso reencontro com o  calorão da rua, que me trouxe de volta ao mundo a que pertenço, à vida da cidade, à minha vida. Um alívio. Mas o destino que me fora traçado pelo vozeirão de jaleco reverberava em minha cabeça. Até que finalmente decidi que não podia deixar que o vozeirão, sozinho, decidisse meu futuro e meu presente. Nada disso, dos meus tempos cuido eu. No final das contas, cada ano é um ano desde que nascemos! Cada ano é um ano, disso não resulta nenhum grande dramalhão. Cada dia é um dia, cada mês é um mês. Pois bem, disse em pensamento ao vozeirão de jaleco: se cada ano é um ano o que nos resta é vive-los! Bem vive-los, ora bolas! Desse modo, lanço ao mundo inteiro uma outra possibilidade de conclusão frente ao dito do vozeirão:  se cada ano é um ano, CARPE DIEM! Outra possibilidade, outro mundo.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Pelas portas, pelas paredes, pelas telas: poesias cotidianas

O que  leva uma pessoa a escrever uma frase, um poema, uma rima atrás das portas dos banheiros? Quando eu era criança achava que aqueles escritos estavam ali porque eram para ser escondidos, eram proibidos. Meus olhos infantis viam nos palavrões que naqueles espaços grassavam a fina flor do proibido. Escritos no avesso da porta, dali não deviam sair, era o que eu pensava. Mas hoje penso diferente. Os escritos nos avessos de portas de banheiros estão ali para nos alcançar, quem sabe para fazer daquele momento de solidão um ponto de virada. Pois que minha vida tem se virado e revirado com esses dizeres. Não sei se traio seus autores ao desejar retirá-los do avesso e colocá-los para circular no mundo. Não sei. Arrisco-me na profanação daqueles escritos agitada pelo desejo de que eles façam mover outras pessoas, que não puderam ainda encontrá-los.
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Descrição da imagem: Em tinta azul, escrito à mão, le-se: a razão é rasinha, amor.

Que a razão seja rasinha, eu desconfiava, intuía, mas jamais esta forma de enunciação chegou-me à boca. Filosofias de botequim por vezes dizem que a razão é elevada, superior. Ou afirmam o seu contrário, absolutamente simétrico: que a razão não é nada, nada sabe, é inferior. Pelo avesso dessa porta fiquei sabendo que a razão é rasinha, está ali, amor, à vista, rasinha, rasinha. Talvez não chegue a pronunciar nada de muito relevante, mas está ali, rasinha. Chego a essa conclusão pelo avesso da porta e como a frase é dita ao amor, sorrio, com malícia, com graça, como quem descobriu alguma coisa nova. A razão é rasinha, está ali, ao alcance, rasinha, rasinha. Sem pânico, sem subserviência, sem alarde me sinto interpelada: pelo amor e pela razão rasinha.

Empadas parentes

Tempos atrás estive numa banca de doutorado de uma pessoa querida, Fátima Queiroz. O trabalho, belíssimo, retomava a brincadeira com a pipa para discutir diversos temas na psicologia social. Foi com esse texto que, entre outras coisas, aprendi que existem brinquedos parentes. Explico-me. Segundo a autora da tese, ou melhor, segundo o que me lembro de ter lido na tese, quando um grupo de meninos se reúne em torno da pipa ou quando as pessoas se reúnem num festival de pipas, diversas brincadeiras e brinquedos parentes surgem ao lado do personagem central, a pipa. São brinquedos parentes porque retomam o voo aos céus, o alcance do ar: boomerangues, peões e bolas passam a ter com a pipa uma relação de parentesco porque ocupam junto com ela, o cenário. Desta forma, enquanto uns se divertem com a pipa, outros jogam boomerangues, peões, bolas, pulam corda, sempre lançando ao céu a imaginação e a brincadeira . Não é qualquer brinquedo que é parente do outro. É justo isso que me leva a pensar que existem as empadas parentes. Hoje, como já disse que faço todos os finais de semana (ver aqui), fui comer a minha empada. Logo notei que a esquina onde ficam as personagens centrais são povoadas pelas empadas parentes, que crescem e se multiplicam a cada dia. Assim, ao lado da carrocinha da empada, há um carro com a mala aberta, onde podemos comprar abacaxis docinhos, vindos, segundo nos disse o vendedor, do Espírito Santo. Três abacaxis por 10 reais. Já provei dessa delícia e recomendo a quem por ali passar: são realmente excepcionais! Logo na sequência, um jovem rapaz veste bermudas e um avental azul para vender suas costelas na brasa. Também já provei essa iguaria e na conversa com o vendedor, ele me explicou que as costelas, para ficarem macias e saborosas, precisam cozinhar na brasa, envoltas no alumínio, por 12 horas! 12 horas de preparo! Isso ele faz em casa. Ali na rua, com uma churrasqueira feita numa espécie de galão, ele segue aquecendo e finalizando o cozimento das costelas. São verdadeiras iguarias! Dignas dos mais refinados chefs de cozinha! Já comi desta saborosa carne mais de uma vez. Outro dia mesmo deixei para comprar uma costela por volta das 13horas e tinha acabado! Sim, vendeu tudo, tudinho! Fiquei com água na boca e me guardei para o final de semana seguinte, que ainda não chegou, mas virá, ah virá! Na calçada em frente há uma senhora que vende doces feitos por ela mesma: pudim de leite, bolo de aipim com coco e mais umas outras guloseimas maravilhosas, das quais ainda não provei. Desse modo, a esquina próxima da minha casa vai sendo povoada pelas empadas parentes, tudo é para comer, para o deleite do paladar. Com as empadas parentes as esquinas se enchem de histórias e de vida. Foi assim hoje: mal sentei no banquinho à espera da minha empada, um senhor ao meu lado, com a empada dele na mão, olhou para mim, abriu um sorrisão e me disse cheio de alegria e gula: Tá quentinha! Acabou de sair agora! Que beleza de fala, pensei! Brinquedos parentes, vida, histórias e invenções deliciosas na nossa língua: Acabou de sair agora! Imaginem quão agora foi este agora!! Tá quentinha!!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O bicho papão do climatério

Muito em breve me tornarei uma mulher de 50 anos. Gostaria de ter escrito esse texto. Não o fiz, ainda bem que a Fernanda Torres o escreveu, abrindo espaço para partilharmos alguns espantos com o bicho papão do climatério.

Texto publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo, em 25/09/2015, disponível on line em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/234234-calores.shtml

Fernanda Torres

Calores

O doutor desconfiou e tirou a prova. Ganhei nota zero nos exames hormonais. Era ele, o bicho papão do climatério
Meus 50 anos, completados no dia 15, chegaram com a força de uma tempestade perfeita.
A data coincidiu com o rebaixamento da nota de investimento do Brasil, a desvalorização do Real, a ameaça de impeachment e os calores furtivos da maturidade.
Um dia antes do cumpre anos, Joaquim Levy apresentou o plano para sanear o Orçamento de 2016. Eduardo Cunha reagiu com o sorriso cínico habitual, e tive receio de que o presidente da Câmara exigisse, via Embratel, a cabeça da presidenta numa bandeja de prata para aprovar a proposta.
A insônia, algo novo em minha vida, virou rito diário. A consciência desperta às 4h30 e entra num vórtex de preocupações. A certeza do abismo para o qual caminha o país, o corpo, a profissão e o futuro dos filhos.
O doutor desconfiou e mandou tirar a prova. Surpresa, ganhei nota zero nos exames hormonais. Era ele, o bicho papão do climatério.
Temo tocar no assunto e virar porta-voz de um fenômeno vivido em sigilo pela maioria absoluta das mulheres.
A mudez é a mãe da ignorância. Numa época em que o sexo é encarado com naturalidade e a causa gay defendida no horário nobre, surpreende o quanto a menopausa se mantém velada, secreta.
Algo perdida, cliquei na página de Drauzio Varella e quase me atiro pela janela com a descrição do que está por vir: a já conhecida insônia, osteoporose, perda de libido, depressão, irritação, gordura localizada, problemas coronarianos, uma sucessão de horrores difícil de encarar.
Encontrei-me com Drauzio no casamento de um amigo e pedi que ele tivesse a compaixão de rever o resumo. Ele prometeu checar, observando que o fim do ciclo reprodutivo da mulher é um dos processos mais preteridos pela ciência.
A medicina é uma cadeira dominada pelo sexo masculino, disse ele. Se os homens sofressem as mesmas transformações, Drauzio disse ter certeza de que os laboratórios teriam se dedicado com mais afinco a atenuar os sintomas.
Mas o que me toca não é tanto a reviravolta feminina e, sim, a constatação de que o século 20, aquele em que me firmei como gente, é, hoje, tão ultrapassado quanto o século 19.
A crise moral à direita e à esquerda marca o fim dos ideais traçados lá atrás, na Revolução Francesa.
Assisto à loura gelada do horário eleitoral do PMDB, seguida por Cunha falando do país que ele sonha para si e farejo o surgimento de uma onda niilista, agressiva, punk. Um desejo de terra arrasada por parte da população.
Feliz, reunida em torno do bolo com os amigos de uma vida inteira –jornalistas, cineastas, diretores, escritores, atores, músicos e produtores–, tive a impressão de que brindávamos em meio ao Baile da Ilha Fiscal.
O desmanche da indústria fonográfica, na virada do milênio, acontece agora nas Redações de jornal, nas produtoras de TV, no mercado editorial, na publicidade, no teatro, no cinema, no mundo como eu o conheço.
É claro que outras formas de pensar surgirão, mas impressiona testemunhar a história.
Outro dia, vi uma foto de Bibi Ferreira criança no colo de Procópio. Me senti toda ela, filha do circo, vinda de outra civilização.
Envelhecer.
Jamais achei que fosse acontecer comigo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Sra Marcia?

Tenho antipatia por telemarketing, aquele telefonema que te alcança em casa, quando você está de chinelo havaiana no pé, complemente dedicado a estar em casa com o chinelo. A ligação começa sempre do mesmo jeito: Sra. Marcia? Ouço isso e já sei, lá vai mais uma oferta imperdível, revistas, cartões de crédito fantásticos, seguros de vida incríveis para o caso de minha morte ou invalidez, entre outras maravilhas. Foi uma dessas maravilhas que veio ao meu encontro dias atrás, por meio de uma nova modalidade de telemarketing. Atendi o telefone, naquele desaviso que a gente fica quando está em casa e ouço a voz numa vibe super amiga, tipo íntima: Olá! A voz era íntima e estranha, fiquei parada ali. De súbito me dou conta de que era uma máquina, daí o que me parecia estranho era a entonação, que para se assemelhar ao natural, levava o tal do natural ao absurdo, ficando absurdamente artificial. Nenhuma amiga me fala aquele Olá tão feliz, assim do nada, sem mais nem menos. Mas a voz super amiga  continua: estou aqui hoje para lhe oferecer saúde! É, saúde! A voz estava super animada com a oferta que logo me faria. E ela seguia: mas se você não quiser prosseguir na ligação disque o zero! É preciso escrever as falas da voz super amiga  sempre com exclamação porque ela só falava exclamando! Então, até para definir como eu devia desligar o telefone ela exclamava. Pensei, mas que raios, se eu quiser desligar não preciso discar o zero, posso simplesmente desligar o telefone, pois não? Fiquei mais um pouco e a voz me diz: Tome vitaminas! Ora, ora, eu lá quero vitaminas? Capsulas de saúde? Me liga, essa super amiga desconhecida, para me ofertar capsulas de saúde e me dizer como devo desligar o telefone!!! (agora exclamo eu!). Plaft! Desligo o telefone à moda ogro, não quero vitaminas, não quero vitaminas nem ninguém nos meus ouvidos exclamando o tempo todo. Deixo tocar na caixa de som roliça, aquela blutifi de que falei aqui, nosso bom e velho Tim Maia: Não adianta vir com guaraná para mim é chocolate o que eu quero beber, chocolate, eu só quero chocolate, só quero chocolate!!! Foi uma verdadeira libertação, uma libertação daquela estranha voz amiga, da prescrição das cápsulas e das exclamações de intimidade. 

domingo, 29 de novembro de 2015

Da série bichos em casa, ou melhor, bichos na ponta da língua

Desde criança convivi com bichos. Tive uma cachorra adorável, Loryn, pincher, miúda e amorosa. Mas além de Loryn, havia os bichos que encontrávamos nos acampamentos que fazíamos: sapos, cobras, passarinhos de toda a sorte, girinos, vaga-lumes, insetos e mais um monte deles! Minha família percorreu o Brasil por mais de dez anos, acampando, viajando de carro, uma variant amarela sem ar condicionado, sem direção hidráulica, cheia de amor, sonhos e bugigangas: o carro era abarrotado de coisas, literalmente, até o teto. Essa aventura gerou mil e uma histórias, delas falarei algum dia. Por ora, vou me dando conta de que os bichos em casa estavam também nas viagens e na ponta da língua. É, na ponta da língua. Com isso retomo a questão dos provérbios de que falei aqui. Como disse, o idioma que se falava em minha família era o dos provérbios e ditos populares. Havia, é claro, inúmeros provérbios que diziam respeito aos bichos, ou antes, aos bichos conosco, na nossa vida, enredados nos nossos modos de falar sobre as coisas mais triviais. Por exemplo, os últimos dias tem sido de chuva forte. Se minha mãe estivesse conosco, ela logo contaria a alguém que hoje choveu de cachorro beber água em pé. Imagine o tamanho dessa chuva? Cachorro bebeu água em pé! Quando meu filho nasceu, eu, como toda mãe, não sabia o que fazer com aquele garoto. Filho não tem manual de instrução não, a gente vai lidando com as situações no improviso. Muitas vezes me vi aflita com situações corriqueiras, como um soluço. Ai, gente, o garoto está com soluço! E agora? Minha mãe vinha logo com a resposta: fica calma minha filha, pé de galinha não mata pinto. A galinha era eu! Pronto, ficava uma galinha tranks tranks! Minha mãe estava sempre por perto. Em dias de muito calor, lembro que ela saía de casa, ia à padaria e comprava dois chicabons, o picolé preferido dela. Um, era para ela mesma, o outro, para o porteiro do prédio. Deixava com ele o picolé e dizia: comprei para você esse picolé porque hoje o calor está de matar passarinho desavisado! Ao conferir uma conta num restaurante, ela podia pegar um erro, um valor cobrado a mais, fazendo as contas rapidinho. E logo concluía: tem que ficar de olho na conta, ficar esperto, sabe como é, malandro é o gato que só come peixe e não vai na água. Isto é, o gato ali era ela, malandra, dava o golpe na malandragem de quem pretendia engana-la e nem precisava de máquina de calcular! Numa outra ocasião, em nossas viagens de acampamento pelo Brasil afora, o pneu de nosso carro furou no meio da estrada. Antes que pudéssemos alcançar o borracheiro para fazer o conserto, PIMBA!!! Furou outro pneu! Caramba, que azar! Na narrativa materna: urubu quando está com azar o debaixo caga no de cima! Que azar, o debaixo caga no de cima! Minha mãe também me ensinava a ser vaidosa, a cuidar das minhas roupas. Num olhar de soslaio para uma blusa mal passada que porventura eu usasse, ela mandava, sem dó nem piedade: vai aonde com essa roupa comida pela boca da vaca? O que era o fim da picada, a roupa devia estar mesmo um lixo total, uma blusa comida, ruminada, por uma vaca e vestida por mim! Minha nossa! Um espanto e uma rima, como disse, também havia a rima non sense: que horror, perereca de maiô! Aff! Perereca de maiô!! Ou ainda, para nos dar uma lição de desprendimento, conjugando provérbios: minha filha, não se aborrece não, vão-se os anéis ficam-se os dedos, dá para os outros as roupas que não usa mais, ficar guardando coisa que não usa é para jacaré egoísta. É, aprendi com ela que jacaré pode ser egoísta e que isso eu não devia ser não. A lista dos bichos na ponta da língua é interminável, havia inúmeros outros ditos com os bichos, filho de peixe ... , cão que ladra..., desse mato não sai..., cada macaco no seu ... ditos e mais ditos, ao infinito e além. E havia uma superstição que me faz ficar até hoje à espreita: minha mãe dizia que borboleta quando pousa na gente é sinal de dinheiro chegando! Sempre que vejo uma borboleta por perto fico no aguardo da grana. Resta-me como dúvida saber se mariposa pode ser considerada na categoria borboleta. A dúvida enraíza-se no fato de que em minha casa mariposas voam sem nenhuma cerimônia, voam deslocando o ar, quase fazendo barulho: chulapa, chulapa, chulapa! É a mariposa voando por aqui! Minha mãe foi embora desse mundo antes de me sanar essa dúvida. Será que, nos domínios da referida superstição, mariposa é borboleta? Se for, acho que vou enriquecer breve breve! Concluo esse post com uma foto: uma borboletinha na tela do computador! Esteve comigo durante toda a escrita, passou o dia inteiro aqui! Será que a miúda vale para fazer a dinheirama chegar?
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Descrição da imagem: uma minúscula borboletinha preta parada no monitor de computador, no qual é possível ver parte da página inicial do google. A borboletinha está de asas e antenas abertas. Suas antenas apontam para baixo, isto é, para a direção da base da tela do computador.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Você sabe quem morreu hoje?

Meu nego e eu visitamos uma cidade linda, São João Del Rey, em Minas Gerais. Fomos só nos dois, o garoto não quis ir. Impressionei-me com a beleza das luzes no entorno da praça onde fica a catedral. Que lindas as luzes amarelas sob o céu negro e límpido de uma noite quente, com estrelas e lua cheia! Sem contar as delícias das comidas, das ruas, das construções antigas. É tudo tão encantador naquela cidade! O povo é alegre, cheio de histórias para contar. Foram dias felizes os que passamos naquele lugar. Num dos nossos passeios encontramos um homem que mudou o curso dos nossos passos. Era um dia quente, fazia sol, a rua estava agitada, no que isso pode ter de sentido numa cidade pequena. Meu nego e eu vínhamos caminhando, admirando o movimento da rua quando de longe avistamos um homem que gritava alto, muito alto, ele berrava: VOCÊ SABE QUEM MORREU HOJE? VOCÊ SABE QUEM MORREU HOJE?  Estava sozinho, acompanhado apenas por seus próprios gritos, movimentava as mãos, parecendo estar tomado por uma dor cortante. As pessoas se assustavam com ele e ao ouvirem aqueles gritos, se afastavam. De modo que conforme ele caminhava ia produzindo um vazio em torno de si. A cada passo abria um vazio, um passo, um grito, um vazio, um passo, um grito, um vazio. Ele vinha em nossa direção, seus gritos chegavam até nós antes que pudéssemos discernir seu rosto. Éramos alcançados primeiro pelos gritos e pelo vazio. Até que ele passou ao nosso lado: VOCÊ SABE QUEM MORREU HOJE? VOCÊ SABE QUEM MORREU HOJE? Nossos olhares se cruzaram rapidamente, não nos afastamos dele e meu nego de imediato respondeu, bem alto, gritando também: NÃO! QUEM? O homem pára por um segundo, abaixa os braços, parece respirar com mais vagar. Ficamos ali ao lado dele, naquele olhar, naquela respiração. Aquilo durou um segundo e uma eternidade. Era uma presença o que sustentávamos. Ficamos. Até que ele seguiu no seu caminhar, agora mais lento, menos crispado e em silêncio. Não sabemos se mais à frente ele voltou a gritar, sabemos, no entanto, que nos encontramos, paramos e nos olhamos. Eu e meu nego também seguimos em nossa caminhada, um tempo em silêncio, até que pergunto ao nego como foi que ele decidiu responder ao homem. O nego me disse que o homem fazia uma pergunta, esperava, pois, alguma resposta. Foi o que ele fez, respondeu. Parou, aceitou desviar o curso dos seus passos por aqueles gritos. Fui com ele e naquele dia o amei mais um pouco. E você: sabe quem morreu hoje?

domingo, 22 de novembro de 2015

Assim como são as pessoas são as criaturas

Na minha família por parte de mãe todos falavam - e falam - por meio de provérbios.  Era surpreendente, a cada situação, um provérbio. Mais surpreendente ainda o fato de que até os últimos dias em que pude conviver com minha mãe, foram 32 bons e felizes anos de convivência, ela era capaz de me surpreender com um ditado novo, que eu ainda não conhecia. Minha avó, mãe de minha mãe, podia recitar versinhos, tudo rimando com tudo, para dizer as coisas mais banais, para fazer uma consideração sobre o sabor de uma comida, sobre um cheiro forte, sobre o apetite, enfim, para as mais corriqueiras das situações de vida havia um ditado, um verso, uma rima. Cresci ouvindo essas frases. Algumas nunca entendi o sentido. Outras fui entendendo ao longo dos anos. Outras ainda não entendi o sentido, mas pesquei a situação em que deveriam ser empregadas. Junto com essa banda da família havia o meu pai que, não partilhando do mesmo universo que o grupo materno, muitas vezes usava sarcasticamente os ditados, de sorte que me ocorreu de lembrar apenas da versão dele para o provérbio! Por exemplo, havia um provérbio - que sumiu da minha memória - que minha mãe usava para falar alguma coisa sobre burrice. Pois que meu pai eternizou o non sense (talvez todos eles sejam puro non sense, me vem isso agora à mente!): burro é o burro que o burro dará! Vez ou outra, no meio de um assunto, meu pai mandava essa aí: burro é o burro que o burro dará! Emitia essa sentença como quem faz uma constatação filosófica. Pois é, minha gente, burro é o burro que o burro dará, ele dizia assim, sem a menor cerimônia. Os ingênuos do entorno calavam, sabe-se lá, vai ver isso era uma grande conclusão sobre a humanidade, ninguém se arriscava a contestar. Mas minha mãe, sabedora do sarcasmo, ralhava com ele,  corrigia o ditado, mas não adiantou nada, ficou essa versão. De modo que hoje recomendo esse ditado, com uma dica: deve ser pronunciado em momentos de fechamento de uma conversa ou para produzir uma conclusão cabal e definitiva sobre tema da mais alta relevância. Há outro, eternizado também por meu pai, no mesmo estilo: assim como são as pessoas são as criaturas. Pegaram? Profundo, não é? Assim como são as pessoas são as criaturas. Esse aí deve ser dito em outra situação, justo quando acaba o assunto, quando se está num grupo e rola aquele silêncio, ninguém diz mais nada. Então, este é o exato momento de dizer pausadamente: é, assim como são as pessoas são as criaturas. Dito isso, das duas uma: ou a conversa acende de novo ou acaba de vez. Tenho a impressão de que meu pai sabia dizer a frase de modo a fazer uma coisa ou outra, mas isso não aprendi. Mas se meu pai era sarcástico e criou uma versão própria dos ditados, minha mãe levava a coisa a sério. Para conversar com ela era preciso entrar naquele mundo de frases e provérbios que ela tinha - meu pai era o único que sabia criar a partir dos ditados, sob os protestos dela, mas criava. Então, se reclamávamos da comida, ela logo mandava: quem tem fome cardos come. Se um lugar tinha um cheiro forte, ela sacava da manga: prefiro a morte ao cheiro forte. Quando ela ia até a vizinha pedir alguma coisa e não encontrava, ela falava: fui a vizinha, envergonhei-me, voltei para a casa, remediei-me. Se um boato corresse forte, lá vinha: em tempo de guerra é boato que nem terra. Ah, havia também as muitas louvações a própria casa: minha casa, minha casinha, merda para o rei, mais para a rainha. Meio desbocada essa, mas ela usava mesmo em presença de crianças inocentes. Um dia bom mede-se em casa: esta deve ser dita naqueles dias que a gente mais não faz do que se jogar de um sofá a outro. E, claro, todos nós sabemos que boa romaria faz quem em sua casa fica em paz. Já para dizer que um filho se parece com o pai, para o bem ou para o mal, não importa: quem sai aos seus não degenera. Se numa briga, você decide calar-se, diga: me fechei em copas. Se na mesma briga se arrependeu, mande: cheguei o rabo à seringa. É possível conjugar os dois, vejam como fica a narrativa: Eu cá cheguei o rabo à seringa e me fechei em copas. Ela podia contar uma situação inteirinha apenas conjugando esses ditados. Perceberam como a coisa vai se complexificando, se sofisticando? Se num dia você dormiu mais do que deveria: dormi feito uma cebola.  Para  dizer que alguém era arrogante, metido à besta, havia uma variação, ambas chulas, pronunciadas por minha mãe na maior cara dura, onde fosse. A primeira versão: come feijão e arrota presunto. A segunda: não tem merda no cú para cagar. Eu ruborizo só de dizer essas frases, mas minha mãe não ruborizava não, dizia era na lata. Eu hein, sujeito bobo, não tem merda no cú para cagar! Era assim e pronto. Vez ou outra, se meu irmão ou eu estivéssemos tristes, chateados com alguma coisa, podia vir: não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Ou uma versão mais filosófica, convocando o tempo: nada como um dia após o outro com uma noite no meio. Nada, nada como esse dia aí, com uma noite no meio. Eu, quando ouvia isso, já ficava naquela segurança que tudo ia dar certo, o que quer que fosse, ia dar certo, tinha a noite no meio. Meu pai tinha a versão dele para este momento também: toda semana tem uma segunda-feira, é o dia para se começar alguma coisa. Toda semana, semana após semana, tem uma segunda-feira. Comeu demais? Já já vem a segunda-feira e você começa uma dieta. Não fala um idioma além do português, quer começar um curso de línguas? Um projeto novo? Já já vem a segunda-feira. E assim por diante, é multi-uso esse ditado. Bom, tudo isso, como se pode imaginar, é interminável porque na família também circulavam, é claro, os ditados mais conhecidos, do tipo água mole em pedra dura..., olho por olho..., e outros no estilo. Agora, se o leitor chegou até esse momento da leitura e achou tudo isso uma pura maluquice, puro absurdo e non sense eu digo em alto e bom som, com meu pai: Ihhhhhh!!!!! Jogaram as carabinas nágua!!!, para indicar que agora sim, o sujeito teve um tremendo insight e entendeu alguma coisa! Entenderam? Ihhhh!!! Jogaram as carabinas nágua!



sábado, 21 de novembro de 2015

Da série bichos em casa: que bolinha de pêlos era aquela?

Numa noite dessas voltávamos para casa eu, o nego e o garoto. A noite estava límpida, fresca e a cigarra cantava alto, anunciando que no dia seguinte faria calor. Seguíamos pelo caminho animados na conversa, falando do dia a dia das nossas vidas. Fui eu quem avistei a bolinha peluda, talvez porque vivo às voltas com esses bichos em casa. Logo falei: olha la, vem uma bolinha peluda correndo em cima do fio de luz! O que será? Um gambá? Olhamos de perto e concluímos que não era um gambá não. Já recebemos essa visita em nossa casa e somos capazes de reconhece-la por aquele focinho comprido, o pêlo eriçado, o rabo enorme. Definitivamente não era um gambá. Não era, claro, um mico, porque micos já são nossos amigos do cotidiano. Vivem por aqui aos bandos, andam pelos fios, pulam nas árvores, fazem barulho e fazem, acima de tudo, muitos outros micos, vivem cheios de filhotes. Penso até que o mais justo seria dizer que moramos numa comunidade de micos, tudo isso aqui é deles, nós somos inquilinos nessa área. Aquela bolinha peluda não era um mico. O interessante daquele enigmático bichinho é que ele andava apressadinho pelo fio, passo após passo, curiosamente sem balançar o fio. Isso mesmo, ele caminhava rapidinho, mas o fio permanecia imóvel. Fosse ele um parente de mico, de gambá ou outro peludo qualquer, uma coisa era certa: era um exímio equilibrista. Dos bons! Nunca antes nesse país um equilibrista dominou com tanta destreza uma corda bamba! Parecia até que para ele a corda não era bamba, era firme como o chão que pisávamos. Ficamos entre encantados e intrigados. Ele passou por nós, quando nos viu deu uma ligeira paradinha, mostrou-se e seguiu apressadinho, sem balançar o fio, mexendo-se como uma bolinha peluda a deslizar sobre um escorrega. O focinho era pequeno, o rabo não tão grande quanto o da gambá. O nego disse que o rabo era o leme, era o que lhe dava equilíbrio no fio. Que sabido o nego! Dos bichos à filosofia e à psicanálise, o nego sabe das coisas. A bolinha equilibrista tinha um leme!  O nego fez até uma comparação: já viu como os equilibristas andam na corda bamba com uma vara na mão? Então, é a vara que cria o centro do equílibrio! A bolinha peluda tem o rabo, por isso se equilibra. Se não tivesse o rabo a bolinha caia no chão, era capaz de se estatelar! Ah, bom! Fiquei feliz de saber que aquela bolinha marrom tinha esse rabo-leme, sábia a natureza que assim o dotou, porque é com esse rabo-leme que ele desfila no fio e nos enche de encantamento! Que bicho era? Isso não sei. Só sei que era uma bolinha marrom, peluda, cheia de graça e de equilibrio e com um rabo-leme!

Da série bichos em casa: dedinho de prosa com asas e alegrias

Tempos atrás avistei dois tucanos da janela da varanda aqui de casa. Aquela explosão de cores me encheu de uma alegria sem tamanho! Que lindeza, ainda mais vistos tão de pertinho. Voando um ao lado do outro, pousaram na árvore bem em frente à varanda. Ali ficaram por um bom tempo. Suponho que a minha alegria os alcançou e foi justo por isso que me enviaram um doce bater de asas. Chamei meu nego para admirarmos  aquelas cores, para tecermos juntos aquele dedinho de prosa cheio de asas e alegrias. São os encantamentos que os bichos em casa nos ensinam a desfrutar. Com eles vamos desenhando o cotidiano com supresas, cores e deleites.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Luciana, o oráculo

Na saída do médico, resolvi dar uma volta. Tireóide nos trinks, bora bater uma  coxa por aí. Parei numa loja de capa de celular, tabletes e afins. Deixei vaguear o olhar. Logo aproximou-se de mim a simpática vendedora, Luciana. Perguntou meu nome, o tipo do meu celular e do meu tablete. Ao ouvir as respostas, Luciana pegou meu olhar pelas mãos e o fez pousar nas capas disponíveis para meu celular. Deixei-me levar para onde ela queria. Mas meu olhar insistia em fugir e rápido pousou numa estranha capa: preta, maior do que as outras. Perguntei: e essa capa, será que cabe no meu celular? Luciana diz: não é bem uma capa, é uma bateria suplementar e com certeza cabe no seu celular. Ah, é? interroguei incrédula. Luciana ágil no gatilho mostrou-me rapidinho como a coisa funcionava. John Wayne não seria mais ágil do que Luciana. Instalada a traquitana no meu celular, Luciana dispara mais uma: todo mundo precisa de uma bateria suplementar! Tomo a observação no sentido existencial e do alto das reflexões profundas que me acometeram, pergunto de novo incrédula: você acha? Luciana no gatilho: claro! A gente vive sem bateria! Lancei-me de novo nas profundezas da reflexão. Que paradoxo estranho, se a gente vive sem bateria, para que a bateria suplementar? Saí da loja sem comprar nem entender nada. Luciana me deu seu cartão de visitas. Guardei-o na bolsa e fui para o estacionamento onde havia deixado meu carro. Depois de catar a chave do carro na bolsa e com dificuldade encontra-la, coloco-a na ignição. Nhammm nhamm nhamm! O carro não pega! Não liga, mastiga! Alguém de longe grita: é a bateria, morreu! Caramba! Retroativamente dei-me conta de que Luciana era um óraculo, traçou-me um destino! Mesmo sem ter compreendido o traçado feito pelo oráculo, eu o cumpri! Uma bateria suplementar! Era isso! Todo mundo precisa! O carro, nós, o celular! Luciana, o oráculo!

Porque eu brinco

Hoje em dia a pressa é uma das coisas que mais me cansa. Que exaustão só de pensar em sair correndo de casa, olhar o relógio várias vezes, comer correndo, ir de um compromisso a outro. Uma exaustão. Tenho andado em busca de lentidão, já falei desse assunto em outros momentos. Talvez por isso me veio à lembrança uma história, dessas de "era uma vez". Pois bem. Era uma vez uma mãe super apressada, sempre olhando o relógio, a vida era um corre-corre danado. Vez ou outra ela até cantava com Rita Lee: "o ano passado passou tão apressado, eu sei, foi um corre-corre danado, o ano inteiro eu passei sem dinheiro..." Não era mal-humorada, era apressada! O filho era pequeno, devia ter uns seis anos, por aí. O garoto entrava no banho e ficava, ficava, ficava. Era uma demora sem fim, pelo menos aos olhos da mãe. Todo dia uma correria, o horário da van, o almoço, a escola, arruma o garoto, o uniforme, a mochila, o lanche, enfim, tudo isso, mais o trabalho dela, a pasta, as aulas, a papelada, a casa, o supermercado! Uma correria. Num desses dias em que o garoto se esbaldava no banho - tempos idos, havia água! - a mãe começa: olha a hora, hein!! Anda logo nesse banho!! Um segundo depois, seguia: Terminou? A hora, olha a hora!! A van vai passar aqui em casa e você não está pronto, cacildis! E foi nessa urgência que a mãe virou-se para o menino e perguntou: Garoto por que você demora tanto tanto nesse banho? Hein? Por que? E ele alegre, cheio de graça e leveza, abre um sorriso e diz: porque eu brinco! Hoje, vinte anos depois, quando me pedem pressa, eu digo baixinho, com um sorriso nos lábios, na minha lentidão recém aprendida: porque eu brinco!

Da série bichos em casa: barítono e sopranos em dias de chuva

Passamos dias de chuva, o que foi um alívio e uma promessa: quem sabe teremos um verão mais úmido e com rios mais cheios. A chuva nos encheu de esperança, a grama da casa ficou verde de alegria. Tico, o gato, viveu a chuva como dias glaciais, enroscou-se no sofá e de lá só se levantava para as necessidades mais básicas. Nada além disso e alguns minutos por dia de alongamentos profundos. O resto era uma preguiça descomunal. Assim seguiríamos por 5 dias consecutivos, orquestrados pela batuta do Tico e da grama não fosse a irrupção de um novo personagem, forte, incisivo, grandiloquente: ele, o barítono da voz rouquíssima, grave, alta. Estávamos todos na sala, nós três, mais o Tico jogado fora no sofá acumulando energia para grandes caçadas que não chegaram. Logo, estava com energia suficiente para produzir uma bomba atômica, tamanho o tempo que permanecia dedicado a extenuante tarefa de não fazer nada e acumular energia. Conversávamos, falávamos da chuva, planejávamos ver um filme, quem sabe andar da sala para a cozinha em busca de um chá quente. No meio da nossa pachorra, eis que ouvimos alto, grave, retumbante: AHHHHH!!! Levamos um susto danado! Calamos. Tico conseguiu mover as orelhas na direção daquele barítono, aquele grave rascante, forte. Vinha lá de fora. Corremos à janela em busca do ser que poderia ter causado aquele som. Ficamos ali na janela a elucubrar que ser poderia ter uma voz tão forte. Por alguns segundos só recebemos de volta o silêncio. Até que de súbito lá vem: AHHHHH!!!! Novo sobressalto. O que é isso, meudeus??? Vem lá de fora mãe, vê se você consegue enxergar alguma coisa! me disse meu filho, sinalizando-me o que eu já sabia apenas para ficar ali na parceria, no tamu junto para o que der e vier. Pelo som daquela coisa, possivelmente viria um dinossauro. O intelectual, no devir etólogo, ligeirinho classificou: é um sapo, Marcia! Um sapo! E AHHHHH!!!!! Outro susto. Eu disse, um sapo, meu nego? O sapo que ficava ali atrás, na direção da mesa da sala era mais, digamos, modesto, fazia um ahhh mais baixo, era um parceiro, até o chamamos de Rodolfo. Pois é, disse o nego. Vai ver o Rodolfo cresceu e veio para a frente da casa. Eu logo disse ao etólogo: nego, se este sapo aí fora for o Rodolfo, temos que admitir que ele cresceu de maneira assustadora, tornou-se um gigante. E AHHHH!!! Ui, gente, é ele! Digo, um gigante, pelo som que ouvimos só podemos concluir que esse bicho é mais alto do que eu, na certa, tem mais de um metro e noventa centímetros, muito mais! E AHHHHH!!!! A cada som do nosso barítono dançávamos nós três, digo, nós quatro, porque havia as orelhas do Tico! Entreolhávamo-nos assustados! Ficamos na janela, olhos atentos lá fora. Víamos a chuva, pequenas poças de água pela rua, a luz amarela do poste, a grama feliz e mais nada. Nada, nada. É certo que nunca vimos Rodolfo, assim face to face, nunca. Mas sempre soubemos que ele era um pequeno sapo, era um ahhhh! com minúscula. Ao modo dele havia até interação conosco, porque eu pelo menos sempre fiz ahhhh! para ele, sempre, não deixava aquele sapo no vácuo não que não sou disso. Eu interagia, ele fazia ahhh! e eu respondia dando notícias: ahhhh! Aquele lá fora era outro sapo, pensei. Rodolfo sumiu, devia ser coisa dele, não foi por falta de interação, de amizade conosco. Mas com o barítono não dava para ter diálogo, teríamos que gritar de corneta, megafone ou coisa que o valha. Para manter aquele papo reto, direto, manda lá que eu pego cá? Só no megafone! Me senti um daqueles personagens do Jurassic Park dentro de uma latinha qualquer enquanto os dinossauros corriam soltos lá fora! E AHHHHHH!!!!!! Ui, socorro!!!! É ele!!! Não vimos nada, ficamos ali um tempo à procura do barítono. Não o avistamos, apenas o ouvimos. Ele cantou em todas as noites de chuva. E em tempos de barítono na chuva, não houve uma só perereca soprano a cantarolar noite adentro. Antes do barítono, noites de chuva eram noites de pererecas sopranos, agudas, alegres, vibrantes, sempre em bando, cantavam. Nunca fizeram um coral, não, cantavam juntas, mas cada uma a sua moda, todas sopranos, agudíssimas, numa melodia que se inventava era nos nossos ouvidos. Fiquei com saudade das pererecas, mas acabei por curtir o barítono. Talvez com ele a interação fosse assim mesmo, vai saber. Ele, alto, grave, retumbante. Nós, silenciosos, com breves sobressaltos e um sorriso de canto de boca, que com o passar dos dias fomos aprendendo a oferecer ao barítono. Choveu. AHHHHH!!!!!!!!!!!

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Pressa e pendência

Nem o coelho de Alice tem tanta pressa. Eis a cronologia das coisas na academia:

* dia 13 de novembro, às 17:15h
Recebi de uma agência de fomento um email de convite para emitir um parecer.
* dia 13 de novembro, às 18:02h
Recebi da mesma agência de fomento um e-mail com o assunto “Pendência na emissão de parecer”. A mensagem dizia : "Não recebemos, ainda, seu parecer para o processo" tal e tal...

Exatos 47 minutos entre o convite e o registro da pendência. Nem aceitei o convite e já fui colocada na categoria dos pendentes. 47 minutos!
Disso concluí que a respiração lenta e profunda, bem como a lentidão dos movimentos, são gestos de resistência nessa vida desvairada que circula pela universidade hoje. Ainda bem que por ali circulam e pulsam também outras formas de vida. Sigo no cultivo destas últimas. E para isso talvez seja preciso a atenção ao desembarque de que falei aqui.

domingo, 15 de novembro de 2015

Ai que nojo! Você fez isso?

Ser mãe é mesmo uma delícia e um desafio. Ninguém sabe de antemão como ser mãe, a gente vai sendo, nesse gerúndio esquisito mesmo. Nesse tempo de ser mãe, de cuidar de outra pessoa, há histórias que voltam, ficam, marcam. Pois foi numa dessas voltas do tempo que me lembrei de uma história. Há muito tempo atrás, uma mãe viveu um inesquecível encontro com seu filho. Arrumou o pequeno menino, devia ter uns quatro ou cinco anos, para a aula de natação: touca azul, roupão também azul, sunga e chinelinho havaiana nos pés. O menino era uma graça, branquinho, cabelos castanhos bem claros e inúmeras perguntas na ponta da língua. Era incansável nas perguntas. Ele entra no carro, ajeita-se no banco de trás, sentado numa cadeirinha que já era pequena para ele. A mãe ao volante, olhava o menino pelo retrovisor, divertindo-se com a imagem do filho, aquela figura adorável que com ela partilhava uma vida. Seguiam os dois entre conversas e sorrisos pela manhã que se abria quente e acolhedora. No meio do caminho o menino pergunta: Mãe, eu nasci da sua barriga? E a mãe: Sim, meu amor, da barriga da mamãe. Silêncio. E volta o menino: Mas como foi que entrei aí? Silêncio e uma certeza: aquele menino não desistiria dessa pergunta, nem das muitas outras que se seguiriam. A mãe, intelectual, metida a descolada, do tipo falo-tudo-para-meu-filho, engata uma primeira marcha nas suas respostas e vai em disparada numa fala, digamos assim, científica, objetiva, crua, a explicar com precisão como é que um neném chega na barriga de uma mãe. Tudo dito, tim tim por tim tim. Tem o piru, a perereca, o primeiro entra na segunda, do piru sai um líquido... e por aí foi, a destrambelhada. O menino, que ela olhava pelo retrovisor, estava ouvindo com atenção, aqui e ali fazia mais uma pergunta. Mas como é que o piru entra na perereca?, ele quis saber. E lá vai mãe com seu furor pela objetividade a dar mais e mais explicações, cada vez mais cruas.  O menino ali na cadeirinha, de touca azul, balançava a cabeça sem entender patavinas daquela loucura dita pela mãe que, nessas alturas, já estava quase na bancada de um laboratório de biologia, tamanha a objetividade dos detalhes que dava ao menino. E eis que ao final o menino tira algumas conclusões: Mas, mãe, para fazer isso tudo tem que ficar pelado um com o outro, né? É, diz a mãe meio ruborizada. Silêncio. Apreensão da mãe. E o menino lança as suas derradeiras conclusões: Mas você fez isso, mãe? Hein? Fez? [silêncio] Ai, que nojo, eca, que nojo!!!!!! A mãe, roxa de raiva [dela mesma, é claro] e vergonha, esperneia: Ai que garoto enjoado! Anda, anda, olha aí, vai perder a hora da natação, fica nesse blá blá blá. Garoto enjoado, anda logo! Muito enjoado, eu hein! E lá vai ele, a touca azul, o chinelinho, correndo para a piscina, quem sabe à espera de alguém que lhe conte histórias de cegonhas e de amores!!

Atenção ao desembarque

Se tem um dia da semana de que gosto é a sexta-feira. Não sou judia, mas faço do shabbat o meu ritual particular, aprendido por certo, com o meu amor. Nesse dia, quando a noite chega, já não trabalho mais, entrego-me aos prazeres do ócio, do chinelo havaiana ao vinho. Entrego-me a Dionisius com prazer e deleite até a manhã de domingo, quando alguns afazeres me convocam de novo ao trabalho. O anoitecer da sexta-feira é o início de um novo tempo para mim. Todas as semanas desfruto de um novo tempo dentro do tempo corrido dos dias, do frenesi do zapzap, das loucuras dos emails e da enxurrada de informações. Ah, que delícia, enfim, é sexta-feira! Logo, não me façam perguntas díficeis, não, não li aquele email, não vi o zapzap, não soube que o prazo final daquele edital é hoje, agora, não soube que aquela banca é agora, não soube de nada. É sexta-feira, e isso é tudo o que sei! Neste clima de entrega ao ócio e seus prazeres, todas as sextas deixo o Rio de Janeiro de barca, de volta para casa, em Niterói. Há anos e anos tenho compromissos de trabalho no Rio às sextas. Compromissos adoráveis, com alunos e alunas com quem partilho uma vida cheia de histórias, de alegrias, de conquistas.  É inegável, no entanto, que sair do Rio e do trabalho no anoitecer das sextas-feiras é uma das imensas alegrias da vida. Entro na barca como quem embarca num túnel do tempo, é outra a minha alma, o meu corpo, os meus pés que antecipam as havaianas antes mesmo de encontra-las. E repetidamente, semana após semana, quando desço da barca, ouço o marinheiro dizer: Atenção ao desembarque, Atenção ao desembarque! Escuto essa frase como uma doce melodia que me chega aos ouvidos para me fazer presente à sexta-feira, para me fazer respirar fundo e encher os pulmões de ar. Já me levanto da cadeira da barca à espera da melodia. E ela vem, sexta após sexta: Atenção ao desembarque, atenção ao desembarque! Gosto de sair do barco olhando inicialmente para o chão, para o degrau, talvez extraindo da melodia um dos seus sentidos, possivelmente o mais óbvio. Mas se lanço o olhar para o chão é para ter o imenso prazer de levanta-lo em seguida e deixa-lo percorrer as cores do céu, as cores e formas das montanhas que contornam a baía de Guanabara, as luzes da minha cidade que começam a se acender. A cada sexta é uma paisagem: no verão o céu vermelho, a indecisão entre o dia e a noite torna a paisagem lindíssima, o vento quente convida a bebida gelada. No inverno, o frio carioca convoca a casa e a meia de lã. E eu chego, toda sexta-feira, entregue, solta, livre! A vocês todos desejo e peço: Atenção ao desembarque! Ao marinheiro, gratidão, e atenção ao desembarque!

Da série bichos em casa, escrita por outros autores. Ana Cristina César, Algazarra

Poema originalmente publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 14 de novembro de 2015.

Algazarra
de Ana Cristina César

a fala dos bichos
é comprida e fácil:
miados soltos
na campina;
águias
hidráulicas
nas pontes;
na cozinha
a hidra espia
medrosas as cabeças;
enguias engolem
sete redes
saturam de lombrigas
o pomar;
no ostracismo
desorganizo
a zooteca
me faço de engolida
na arena molhada
do sal
da criação;
o coração só constrói
decapitado
e mesmo então
os urubus
não comparecem;
no picadeiro seco agora
só patos e cardápios
falam ao público
sangrento
de paixões;
da tribuna
os gatos se levantam
e apontam
o risco
dos fogões.

Coby Dylan


01 de novembro de 2015.

Quando criança, meu filho gostava de Coby Dylan - era assim que ele dizia. Mãe, bota para tocar o Coby Dylan! Rolava um Coby Dylan no nosso aparelho de CD. Em alto e bom som, Coby Dylan ecoava na nossa casa. Cantávamos com ele usando nosso inglês macarrônico. Mas isso não é o mais importante. Importa que cantávamos com Coby Dylan. Hoje, quase vinte anos depois, com a caixa de som roliça, o blutufi e o spotfy meu filho me ensina mil e um sentidos para blowing in the wind. Jamais imaginei que essa música tivesse tantos e tantos sentidos quantos os que me foram descortinados pelo meu filho. O tempo passa, os filhos crescem e nos devolvem o imponderável e o enigmático que, em última instância, transmitimos. Como foi mesmo que isso se deu? The answer, my friend, is blowing in the wind.

sábado, 14 de novembro de 2015

Psicanálise da vida cotidiana ou das empadas e do contemporâneo


21 de outubro de 2015.

Moro num bairro onde são vendidas as melhores empadas de todo o universo. Aqui em casa o final de semana é aguardado em função das empadas. Logo logo será sábado e já sei que iremos na esquina, onde ficam as duas carrocinhas à lenha, para saborear aquelas iguarias. O volume de apreciadores é grande. Se o freguês quiser uma aberta de queijo é preciso chegar mais cedo, porque estas, pelo visto, são o grande hit parade: acabam antes das dez horas. Algumas vezes abro mão das abertas de queijo em prol de umas horinhas a mais de sono, já que é direito de todo trabalhador dormir até mais tarde no final de semana. Disso custo muito a me desprender. Na defesa do sono, opto por comer empada de carne seca. Ah! Um detalhe que faz toda a diferença é que o recheio de azeitona não inclui o caroço, o que garante segurança e tranquilidade total. Comemos a empada no maior relax, sabendo que nossos dentes serão preservados de qualquer choque mais violento! Sentamos nuns banquinhos que ficam na esquina ou mesmo pela calçada. Ali comemos nossa empada de cada final de semana, sabemos das notícias do bairro, encontramos a azeitona pacífica, olhamos uma ou outra criança-parceira de paladar a degustar a empada fazendo gracinhas e falando tatibitati. A empada é um acontecimento nas nossas vidas. Eis que um dia lá estávamos a degustar nossas empadas. Estávamos felizes por nós, pelas empadas, pelas azeitonas sem caroço, por aquele delicioso happening da manhã do sábado, pelo simples que é comer com prazer, por tudo isso, pelas crianças-parceiras, pelo sol, estávamos felizes com nossos dedos sujos de farinha. A esquina das empadas é um ponto de encontro e neste dia não foi diferente. Enquanto comíamos fomos cumprimentados por uma moradora do bairro. Cumprimentados é modo de dizer, fomos atacados. Sim senhor, atacados. A moradora passa por nós, olha com olhos de repreensão - deve ter pensado qualquer coisa de horrível a nosso respeito - e dispara: Que bomba calórica hein???!!! Bomba virei eu!!! O que é isso, gente? Um casal que se ama não pode mais comer uma empada? Gente, uma empada? Afff que saco, criminalizaram a farinha branca, o gluten, a carne seca, a azeitona com e sem caroço! Criminalizaram a empada! Fiquei indignada. Falei com meu nego que aquilo não era possível, não era. Pessoa mal educada. Não perguntei nada a ela sobre bombas calóricas, empadas, nada. Mal educada, pronto. O nego psicanalista-para-todas-as-horas, vendo-me na situação aflitiva e irada, manda essa: Marcia, ela não falou isso conosco não. Era com ela mesma. Olhei para o nego: Oi? Que com ela mesma, dá onde você tirou isso? Ela falou conosco, direto e reto. Ele explicou lá umas coisas, era com ela mesma, falou aquilo para ela, nós fomos só uma ocasião e seguiu a desfiar uma psicanálise de quinta categoria, aprendida possivelmente com um analista de bagé pacificador. No meio disso sacou referências sobre a questão da saúde no contemporâneo, o mal estar, a biopolítica, Agamben e não sei mais o que... Ouvi aquilo tudo mais do que indignada, retomei: nego, pára de inventar, a coisa é simples, figura mal educada aquela lá, bora gritar aí para meio mundo que a gente come empada sim senhor, às favas quem criminaliza a empada! O psicanalista riu de mim, carinhosamente tirou com a mão um pedacinho de farinha branca que tinha ficado no meu queixo, trocamos umas bitocas e seguimos adiante, na espera do outro final de semana e da próxima empada.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Kosmic blues e vida longa aos mestres!

17 de outubro de 2015.

Hoje finda uma semana marcada pelo dia 15 de outubro, dia do professor. Foi uma semana de muito trabalho, mais do que imaginei que pudesse dar conta, muito mais. Um evento me tomou pelo menos dois dias inteiros de muita intensidade. No meio disso tudo, o 15 de outubro e tantas mensagens de carinho de alunos e ex-alunos. No auge do trabalho sem trégua encontro um mestre, professor Ronald Arendt, com quem partilho tantas publicações, achados de pesquisa, textos, ideias, orientador do pos-doc, um amigo. No meio do congresso, no dia do mestre, o professor me fala sobre um documentário que assistiu no Festival do Rio. Era um documentário sobre Janis Joplin, ele me disse. E seguiu a me falar sobre os anos 70, anos que ele mesmo viveu no auge da juventude. No curso dos últimos anos, sigo muitas das orientações do Ronald: da leitura dos textos acadêmicos aos filmes, receitas de comidinhas, músicas, peças de teatro, exposições. Pois fiquei com Janis Joplin. E hoje, sexta-feira, eis que Janis Joplin, cantando Kosmic Blues, explodiu aqui em casa numa caixinha de som roliça que funciona via blutufi. O som que sai daquela caixinha parece uma mágica! Pequena, ela produz um som que invade o corpo e a alma. A casa inteira era Janis Joplin em volume máximo, acrescido, é claro, pelo meu backing vocal! Essa música me encanta pelo que faz passar do teclado ao metal, do sussurro ao grito, do silêncio à explosão, da quietude ao escândalo, do sereno ao intenso. Dionísio invadiu a noite de sexta-feira na semana do dia do professor! Pois é assim, no conjunto das passagens e das travessias, que agradeço por todas as mensagens que recebi no dia do professor. Sem os alunos não teria vivido nenhuma dessas passagens. É assim que agradeço aos mestres que tive. Sem esses mestres não teria aprendido a desfrutar as travessias. Porque no final das contas aprender (e ensinar) não é senão isso, uma travessia entre o saber e o não saber, entre as certezas e as incertezas, entre um mundo dado e outro incerto, entre a terra firme e o abismo, entre a angústia e a alegria! É uma vida que pulsa! Janis Joplin: na caixa de som, bem alto, oh baby! Dionísio e as travessias! Vida longa aos mestres! Não são fortíssimas as travessias que essa música nos faz viver? Só os mestres nos fazem experimentar essas travessias! Só os mestres! Janis Joplin: presente! Vida longa ao professor Ronald! Vida longa!!!

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Da série bichos em casa escrita por outros autores. Ela e eu, por Zélia Duncan


11 de outubro de 2015.

Da série bichos em casa escrita por outros autores, com delicadeza, graça e sensibilidade, “Ela e Eu”, por Zélia Duncan. Publicado originalmente no Jornal O Globo, em 02 de outubro de 2015.

Sempre fui cachorreira, mas Doralice, uma gata siamesa, me conquistou.
Eu sempre fui cachorreira, com muito orgulho. Com tudo que esse discurso implica. Sempre amei nos cães, o que os donos de gatos consideram menor. A subserviência, o rabo abanando, o medo de nos desagradar, perdoando nossos rompantes, nossas tristezas, nossa aparência. Amo chegar em casa e ser recebida explicitamente, ou saber que eles estão ali, aos meus pés, sempre querendo participar.
Foi em meio a todo esse ambiente e numa casa onde havia dois cachorros, que Doralice chegou. Bradei, profetizei, mas ela chegou. Mais que isso, EU fui buscar na casa de duas amigas queridas que precisavam desovar aquela ninhada. Siamesa. Sim, linda, devo admitir. Um gato bebê não pesa, levita! E tem aquela penugenzinha por cima do futuro pelo. Olhos azuis, assim era ela. Tentei ser durona, mas torcia pra ficar em casa sozinha, pra podermos brincar em paz. Mas também, quem pode resistir a um bebezinho… Lembro ainda em Brasília, quando meu irmão levou um filhote de coruja pra casa e guardou em sua gaveta de cuecas. Descobrimos com um grito de mamãe, que deu de cara com uma coisa “zoiuda” e assustada. Corremos pra ver. Penugem estranha, a caminho de ser asa, desengonçada, esbugalhada, mas, mas… QUE GRACINHA! E não foi sem chororô que libertamos aquele amor de criatura. Imaginem um pequeno siamês, como evitar? Os cachorros curiosos entenderam que ela ia ficar e que, principalmente, estava protegida pela chefe da matilha. Foi a duras penas que entendi que aquela alegre canção, “nós gatos já nascemos pobres, porém, já nascemos livres”, não passava de pura verdade. Ela um dia sumiu. E por morarmos numa casa, isso foi bem fácil. Fiquei indignada. Como? Que traição! Meus cães nunca me abandonaram assim. Foram 20 dias. Um belo dia, do nada, lá estava ela no muro. Bradei de novo, jurei que não me apegaria, que nem olhar pra ela eu queria mais. Botei uma coleirinha com seu nome e o telefone da casa. Sumiu de novo… Dias depois, toca o telefone: Por favor, Dona Doralice está? É que a gata dela está aqui na minha casa. Lá fui eu, pegar Dona Doralice na casa alheia.
“Eu prefiro viver tão sozinha
Ao som do lamento do meu violão…”
E foi ficando. Vez em quando dormia fora, mesmo depois de ser castrada e já ter tido uma filha, que acabou ficando também.
Certa feita, passa um vizinho lá da frente e a cumprimenta, bom dia, princesa! Eu sorri, ela se chama Doralice! E ele: Pra você, né? Lá em casa é Princesa! Vida dupla, esfregada na minha cara!
Mas o fato é que ela era mais minha do que do mundo todo, que também a tinha. Viu minha vida virar do avesso algumas vezes. Me viu muito feliz também. Teve ódio de mim, quando outro cachorro chegou. Levou um presente enquanto eu lia em cima da cama. Ela subiu com um miado esquisito, eu não conhecia nada de gatos. Parou pertinho de mim, abaixou a cabeça e abriu a boca. Uma barata meio tonta começou a rodar em cima do lençol. Pulei, gritei, só não cantei. Me disseram depois, que gatos trazem presentes e comida. Mas não me chamo GH nem nada… não tô com fome, Doralice, e se estivesse, iria atrás de minha própria caça, combinado?
A barriga mais enxuta e macia da casa. Gostava de deitar de barriga pra cima e que um escravo a acarinhasse. Sim, gatos mandam até nos que se acham mais mandões, como eu. E os siameses tem um miado 360 graus. M I A UUU. Reclamam, exigem. E cá pra nós, são adoráveis. Depois dela, convivi com alguns gatos e passei a olhá-los de outro modo, embora seja cachorreira. Doralice é a gata mais carinhosa e chameguenta da história do meu país. Meu gatorro…
Quando mudei de casa, ela simplesmente se negou a acompanhar o cortejo. Sua filha, Ritinha, entendeu logo, os cachorros, nem se fala, mas ela não se conformou. Como era no mesmo bairro, eu trazia, ela voltava, eu trazia, ela voltava. Desisti, temporariamente, pra ver o que acontecia. Ela não voltou. Eu pedia pra alguém ir lá ver se ela estava sendo cuidada pelo tal vizinho. Um dia fui até a antiga casa, entrei na sala vazia e presenciei uma das cenas mais devastadoras, lá estava ela teimosa, solitária. Me viu e M I A UUU. Chega. Levei, botei numa coleira, por uma semana, presa num quarto. Revolta, olhares ameaçadores e… entendeu, ficou. Sacou que a vida tava boa de novo. Passou a me seguir o dia inteiro, a ponto de eu ter que fechar a porta do quarto, para ter privacidade. Ela se escondia dentro do armário, resolvia sair de madrugada e quase me matava de susto.
Doralice partiu nessa primavera machona, com bafos de verão, desse ano sombrio que tem sido 2015. Dezesseis anos depois, no meu colo. Choro. Logo eu, que sou cachorreira.
“E agora, amor, Doralice, meu bem
Como é que nós vamos fazer?”

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Da série bichos em casa: sons na madrugada


28 de julho de 2015.

Esta noite o corpo quis acordar antes da hora. Era madrugada ainda quando despertei. Fiquei na cama fingindo que dormia, quem sabe me enganava e acabava dormindo. Não me enganei, segui enroscada nas mantas, protegendo-me desse generoso inverno carioca enquanto me dedicava a atentar aos sons da madrugada. Embora o silêncio dominasse a cena, longe, bem longe era possível ouvir um latido ou outro dos cachorros. Latidos breves, tive a impressão de que não se comunicavam. Havia os graves e fortes e os agudos e ligeirinhos. Logo notei que na madrugada os cães ladram, dos grandes aos pequenos, eles ladram. Os sons vinham de bem longe, pareciam-me até que os cachorros estavam em outro bairro, outra cidade, não sei. Aliás, da cidade mesmo não ouvia nada, puro silêncio. Lembrei-me, mais uma vez, que a noite era de inverno. Se fosse noite chuvosa haveria o barulho das pererecas, que cantam alto e em sinfonia sempre que chove. Se fosse noite de verão haveria grilos. Mas não havia nem pererecas, nem grilos, apenas cães e um gato perdido que deu um uivo para não esquecermos que pela rua há felinos em ação. Assim passei as horas da madrugada, colhendo sons. Após algum tempo, começo a ouvir passarinhos, cantos variados, um após o outro iam tecendo a manhã, deixando para trás a madrugada. Detive-me nos cantos: alegres, bonitos, pareciam bordar a manhã que ia chegando. Em seguida, ainda sob o ritmo dos passarinhos, comecei a ouvir a cidade, esse bicho vivo, cheio de ruídos. Daqui de casa os sons da cidade são distantes, ouve-se uma vibração, mais do que um som específico. No primeiro plano a música dos passarinhos, no fundo, uma vibração dizia que as pessoas saiam de casa rumo a suas vidas diurnas. Logo irei me juntar a elas, pensei. E foi o que fiz, não sem antes cantar com os passarinhos.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Da epistemologia e da vida cotidiana: ou como os objetos são teimosos


16 de abril de 2015.

Hoje na aula de epistemologia falávamos sobre um texto no qual se lia que após uma crise do paradigma moderno, vivemos uma abertura a um novo paradigma que, entre outras coisas, investe num conhecimento construído pela ligação, pela conexão, pelo que nos liga ao mundo. O novo registro é o da interconexão, da intertextualidade. Muito bem, acho que entendemos isso. Mas salta aos olhos que nem tudo se liga, há coisas que tem uma teimosia danada em não conectar, em não ligar. Insistem na separação com uma persistência espantosa. Foi justamente o que vivemos outro dia. Temos um aparelho de som que é uma relíquia, foi lançado, disseram, no mesmo ano que o Fusca! É a válvula! Sim, a válvula! Chuchu beleza, som de primeira! Acontece que quando aquilo enguiça é uma danação. Não tem peça para repor, ninguém sabe como operar com aquela geringonça que pesa mais ou menos 10 toneladas, por aí... Encontramos um senhor de idade, apenas esse senhor, que conserta o aparelho, cata as peças, monta gambiarras, faz de um tudo para botar a coisa a funcionar. Sempre digo a ele: seu José, vou me desfazer desse som, vou comprar outro, coisa moderna, tipo 4 em um! Já viu por aí? E ele sempre me convence a não fazer isso, o fusca, o som, as válvulas, ele jovem, sonhando em ter esse aparelho de som, não teve... encontrou conosco e com o nosso som, uma relíquia... E ele segue nessa linha há anos! Anos e anos! Agora a relíquia resolveu dar uma descansada de novo e não conseguimos falar com seu José. Dei um golpe, sem ser infiel aos sonhos do Seu José (isso jamais!): vamos partir para outra, ficamos com a relíquia e partimos para a pós-modernidade (na linguagem do texto). Nada de 4 em um, são muitos em um, tudo ligado sem fio! É? Sem fio? Perguntei. E como é que bota a música aí? O vendedor explicou detidamente, falou do blutufi (aquele th maldito e impronunciável... seguimos no nosso português brasileiro), as promessas eram realmente da conexão de tudo com tudo via blutufi! O blutufi deve ser o cara nessa pós-modernidade da conexão, foi o que logo pensei! Chegando em casa começa a dificuldade. Abri a caixa e o aparelho estava lá dentro, com um fio apenas, o que o liga à tomada para carregar. Não tinha manual! Não que eu leia manual, não leio, aquilo não é para ser lido. Mas é para dar aquela segurança de que alguém vai ler o manual, vai entender o que está ali e vai resolver as questões. Uma segurança emocional. Fiquei super insegura, sem manual, que estranho. Liguei, olhei, mexi, remexi, chamei o google... Desisti, a coisa permaneceu muda, inerte e indiferente às minhas investidas. Recorri ao intelectual que tenho em casa e falei que era preciso resolver o problema. De um lado, a relíquia aposentada, de outro, a pós-modernidade teimosa. O intelectual disse-me que era fácil, era só passar a música pelo blutufi. Ah, que ótimo, é fácil! Então tá tudo certo. Espero o sábado, o intelectual num estalar de blutufi coloca isso para funcionar. Chegou o sábado. Rapaaaazzzz!!! Na teoria tudo é fácil!!! Blutufi o escambau!! O intelectual sentou-se, estranhou, foi para o google, descolou um vídeo bizarro de um cara que mostra que o tal aparelho funciona debaixo dágua! Que útil, pensei! Vamos ouvir música debaixo dágua! A cena era formada pelo intelectual sentado, o computador, o youtube e aquele cara enfiando a caixa de som numa bacia, milhares de outros pequenos aparelhos em volta, tudo ligado no blutufi, nada conectado, nada funcionando. Clamamos por um fio, um cabo, sei lá, muito melhor, bota um fio, liga uma coisa na outra e pronto! Foram horas nessa saga. A teimosia das coisas, não queriam conectar não. Se lixaram para o blutufi. A caixa de som permanecia muda. Ah, tem um aplicativo! Baixa o aplicativo, o cara da bacia está falando isso. Baixamos. Ih, não é esse aplicativo não, é outro. Baixamos o outro. E agora? Tecla, liga, desliga, senta, levanta. Silêncio. O cara da bacia disse que se pode ter várias caixas dessas, todas ligadas via aplicativo via blutufi! Ih, gente, se uma caixa já não liga com nada, imagina várias caixas? Vai ser uma desgraça pelada. Até que após horas de batalha, o intelectual domina o blutufi, que domina os outros aparelhos e o som explode naquela caixa roliça!!!!! Alto, forte, vibrante!!! Pulei, dancei, aquilo ecoou no corpo e na alma!! Quéquéisso??? Era Nina Simone, louvando my sweet lord!!!!! Ah, louvamos também, raios! Na marra conectamos muitos em um, via blutufi na voz rascante de Nina Simone!!! Gritamos com ela: aleluia, aleluia!!!! Yes, a pós-modernidade deve ser isso aí!!! Depois vieram os compas, Gilberto Gil, Tim Maia, Jorge Benjor, Belle and Sebastian, Bob Dylan! Foi uma invasão, uma festa! Fiquei eufórica, cantei noite adentro com essa galera toda! Conexão total, uhuuuuhuuu!!!!!!!!!!!! Envio Nina Simone para vocês! Alguém pode resistir a esse som e não explodir de alegria junto com ele?
PS: E se alguém aí encontrar o Seu José não esquece de dizer a ele que os sonhos dele estão aqui conosco, vamos cuidar deles com o maior carinho! O fusca, as válvulas, a relíquia, tudo isso uma hora dessa vai fazer conexão e nós estaremos aqui para louva-la com o Seu José!!!

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Pau de selfie


18 de março de 2015.

Acho muito interessante o que se pode dizer em cada língua. Há coisas que só podem ser ditas em uma língua, não em outra. Exemplo disso é o pau de selfie, expressão linguística que ganha contornos únicos no nosso idioma, o português. Antes da consideração, digamos linguística, há que ser observado o próprio fenômeno. A todo momento há pessoas tirando fotos de si mesmas - selfies. Dos enterros às passeatas, pelos quatro cantos do mundo, qualquer ocasião é ocasião para um selfie. Parece-me um fenômeno recente, contemporâneo, uma admiração enorme por si mesmo. Um si mesmo que se fotografa daqui, dali, no claro, no escuro, em todas as situações. Sim, sim, conheço o mito do Narciso e tenho convicção de que somos todos, em maior ou menor medida, herdeiros do tal mito. Mas é que o fenômeno a que me refiro parece um pouco diferente do que se passa com Narciso. Primeiro, o lago-espelho está sempre no bolso. A toda hora saca-se o lago-espelho para um clique. Depois, a questão não é tanto tirar a foto por tirar, porém, mostra-la, coloca-la pelas redes sociais, por todas as redes sociais. Por fim, a pessoa parece que viceja com as fotos tiradas e espalhadas. O processo torna-se infinito: tira selfies, partilha, viceja, tira selfies, partilha, viceja, tira selfies... Não vai no que digo um julgamento moral. Não é isso o relevante. Sublinho a minha perplexidade, agudizada pela intensidade que o fenômeno ganha com o pau de selfie. Que beleza de aparato! O tal do pau de selfie aumenta a potência dos selfies! Maior alance, novos ângulos para as imagens! Talvez até o pau de selfie tenha redefinido o selfie. Não sei bem se podemos dizer que um fenômeno existe fora das suas formas de dizer, nessa complicação filosófica não entrarei, ainda que esteja ciente de que o que digo passa por esse imbróglio. O que me parece mágico - opto por ficar com essa versão da coisa, quase uma mágica! - é que essa expressão, pau de selfie, tem uma pertinência com o tal fenômeno que só se expressa em português! Por exemplo, em inlgês, o selfie stick não tem o mesmo sentido, a ambiguidade: pau-de-selfie! Um primor da nossa língua, que precisão, que bela ambiguidade, que força tem essa expressão para falar desse fenômeno de forma reduzida, com muito mais concisão do que pude fazer nesse post! Essa é a mágica! A precisão linguística da ambiguidade! Um self, um pau. Juntos vão ao infinito e além, reproduzindo imagens e mais imagens de si mesmo. Não é curioso isso? Sempre me espanto quando o ouço os camelos aos gritos: pau-de-self, pau-de-self! E sempre tenho vontade de gritar logo em seguida: que belas palavras! a precisão da ambiguidade! bravo, bravo!

domingo, 8 de novembro de 2015

Da série bichos em casa: o bicho homem



10 de fevereiro de 2015.

Bicho estranho é o bicho homem. Havia um casal que se amava muito. Moravam numa casa antiga e velha. Por mais de uma vez a casa foi visitada por ratos. Não, eles não vinham à casa porque ela era velha, mas porque era casa e ficava, como quase todas as casas, no nível da rua. Não era um apartamento lá no alto. Era uma casa, e segundo informações colhidas pela mulher (era pesquisadora), ratos-entram-em-casas. Logo que soube disso a mulher foi tomada por dois afetos: no coração, um abatimento. Ai que horror, acordar à noite e encontrar um rato a andar pela mesa da cozinha! Na alma, uma determinação: ou ela acabava com os ratos ou os ratos acabavam com ela! Mais pesquisas. A solução? Gatos são os predadores naturais dos ratos. Bimba! Encheu-se a casa de gatos, ela passou a amá-los, não mais porque eram os predadores naturais dos ratos, mas porque eram gatos, esses seres adoráveis! Mas disso ficou um resquício no coração, uma sequela mesmo. A mulher tinha sobressaltos. Andava pela rua e se via uma pequena folha a mover-se com o vento, dava um pulo: um rato??!!! Era assim. Um susto ficou instalado no coração da mulher e a qualquer sussurro do mundo, pronto, ele virava um susto enorme! A casa velha nunca mais foi a mesma porque a mulher a habitava com esse susto no coração. Os gatos não eram predadores naturais para esse susto. Será que haveria os predadores de susto no coração? Nesse tempo, o casal apaixonado estava empenhado na construção de uma casa nova. Todo sábado eles visitavam a obra da casa nova. Para eles a obra era um sonho e um enigma! A casa nova, desejada, planejada, desenhada nos ares mil e uma vezes, agora se desenhava também nas pedras e no concreto. Mas aquilo era um enigma, eles entravam na obra, que mais parecia com escombros e não entendiam o que viam. Aqui é a sala! E o outro logo dizia: ah é? Pensei que fosse a cozinha... E essa parede aqui, será que vai ser o que? E ficavam horas nesse jogo de adivinhação. Era divertido, eram os sonhos, o amor, a vida que ia se fazendo naquelas perguntas sem respostas. Acontece que a mulher ia para o sonho em obras com o susto no coração. A coisa tinha se instalado com força naquele pobre coração. O marido, cheio de amor, percebia o susto mesmo quando ele estava silencioso, mesmo quando nenhuma folha se agitava no chão. O homem sabia o que estava no coração de sua amada. Notava que a mulher não visitava a obra da casa nova com o mesmo brilho nos olhos de outrora. Então, ele começou a falar-lhe ao coração, como só os homens apaixonados sabem fazer. Apontou para o terreno nos fundos da obra e disse: Aqui é tão fresco, né? Sente a brisa! É a mata, olha que linda! A mulher olhou a mata, sentiu a brisa e se enroscou nas doces palavras do seu amado. E ele seguiu em suas ponderações, percebendo, sem dúvida, que suas palavras acalmavam aquele coração aflito. Sabia que aqui não tem ratos?? Ele disse. Os olhos da mulher foram invadidos por uma luz solar: Ah é?? Aqui não tem ratos??? O sorriso já chegava aos lábios da mulher... mas ali naquele sorriso a pesquisadora veio sorrateira soprar uma pergunta. Pesquisadores são seres que não descansam nas soluções apressadas. Silêncio. A mulher-pesquisadora fez-se interrogação e disparou: E por que aqui não tem ratos ? O homem apaixonado respondeu na lata: Porque tem cobras!


sábado, 7 de novembro de 2015

Da série bichos em casa: lagartixas



30 de setembro de 2014.

Quando eu morava em apartamento as lagartixas eram brancas, ou melhor, off white. Agora moro em casa e elas são maiores que as irmãs albinas e são verdes, de um verde bem escuro, quase preto. Perguntei ao meu nego o porquê disso. Ele de pronto tascou a primeira resposta: é o mimetismo! E eu: ah é? E por que será que elas são bem maiores do que as irmãs? Humm, foi só o que ele disse. Levantou-se, foi examinar a pequena defunta que jazia no chão da sala (assassinada que foi por Diadorim, nosso querido gato). Olhou, olhou e logo concluiu: Marcia, é um jacaré! Oi? Jacaré? O que, filhotinho? E a mamãe, o papai deste serzinho agora defunto, onde será que estão? E de supetão o nobre intelectual manda mais uma: estes bichos não cuidam dos filhos não, botam no mundo e vão embora. Ah, bom! Que alivio, então! Não vamos precisar conhecer os jacarés-mamãe-e-papai!

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O Caqui e a cica


01 de maio de 2014.

Estive no mercado para comprar caqui, alimento que figura no domínio das minhas mais sinceras e dedicadas paixões. Olhando as frutas expostas no balcão do mercado, comentei para mim mesma e também, talvez, para a senhora que estava ao meu lado:

- Humm, estes caquis não estão bonitos, estão com aquela cara de que tem cica...

Ao que ela, de imediato, respondeu:

- A cica é o que há de melhor no caqui!! Tudo o que precisamos para a saúde tem na cica do caqui, ômega três, óleos bons, substâncias que combatem radicais livres, tudo tudo que é bom para a saúde está na cica do caqui.

- Menos o prazer, não é mesmo?, retruquei.

Às favas para este império da saúde!! Eu só queria um caqui saboroso, só isso! Não queria gotículas de saúde com cica!

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Da série bichos em casa. A cobra: nós e ela


03 de novembro de 2013.

Outro chamamos um pedreiro para pintar uma parede aqui em casa. É que ela ia receber um armário novo, precisava estar nos trinques para a chegada deste novo companheiro. Recebi o pedreiro logo cedo, mostrei-lhe onde estavam os apetrechos: tinta, lixa, massa e mais umas coisas. Segui para o trabalho. Quando retornei, à noite, logo vi a parede, novinha, lindona! Demorei o olhar ali. Quando fui descansar a bolsa que me pesava no ombro, vejo em cima da mesa uma coisa estranha: parecia de plástico, fino, comprido, meio amarelado... Me aproximo, olho com cuidado. Pego aquilo na mão: parecia uma cobra! As marcas da pele estavam ali, naquela coisa plástica. Guardei mistério, sem certeza alguma do que tinha colocado nas mãos.

No dia seguinte, recebo de novo o pedreiro.

- Gostou da parede, Dra. Marcia?

- Adorei, tá linda!

- Viu o que eu deixei ali em cima da mesa?

- Vi, o que é aquilo?

- Ué, Dra Marcia, é a pele da cobra!!!

- Pele da cobra???? Como assim?

- A senhora não sabia que cobra troca de pele? Cobra troca de pele, Dra. Marcia!

- Tudo bem, mas o que a pele da cobra faz em cima da mesa da sala?

- Achei ela ali, na junta da viga de ferro com a parede!

- Na junta?

- É Dra. Marcia, a cobra ficou abrigada ali para trocar de pele. Agora, como é que ela chegou na junta, isso não sei.

- Minha nossa! Será que ela demorou muito ali?

- Dra Marcia cobra não troca de pele igual a gente troca de roupa não. É coisa lenta, demora dias!

- Dias? Então moramos com a cobra dias e dias, na sala? Nós e ela????

- Pois é! ( e ele ria do meu espanto).

- E agora?

- Agora? Ué, trocou a pele e foi embora, tá por aí, ele disse.

Fiquei ali, com aquela presença vazia de cobra na mão. Dias e dias com a cobra, na sala, na sala!!! Pertinho do sofá. E aquela parede, ô peste, como dizia mamãe, guardou este segredo por todo este tempo!

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Da série bichos em casa: breve balanço dos animais que em minha casa estão ou estiveram



21 de outubro de 2013.

1- Cobra. Ficou por aqui uns 3 ou 4 dias, dizem que era jibóia, logo, não venenosa. Que beleza, pensei! Não venenosa, tudo certo então. Como veio, foi-se. Paradeiro no momento, desconhecido.

2- Sapo. Ele continua aqui. É monossilábico. De tempos em tempos faz AH! E cala. Eu sempre respondo, AH! Nunca o vi. Sei dele apenas pelo AH.

3- Pererecas. Várias. Ontem, uma defunta na cozinha. Hoje, outra defunta na cozinha. O serial killer de pererecas? Cora, a gata que conosco vive.

4- Aranha. Não, não. Não era uma aranhazinha de meia tigela, amadora. Era uma coisa profissional, alto gabarito. Negra, com o traseiro peludo, enorme. Do tamanho da palma da minha mão. Nunca antes neste país se viu aranha assim. 

5- Lagarto. Este foi visto há algum tempo. Estava em estágio probatório para crocodilo. Passou com louvor, tenho certeza.

6- Uma ave enorme, enorme, enorme. Nem sei como voa. Disseram que era um gavião. Não vejo também já tem um tempo.

7- Insetos? Merecem um capítulo. Todas as cores, tamanhos, formas, cheiros, ruídos, odores!!

8- Baratas? Não, isso não tem aqui. É coisa para os fracos.

9- Há outros bichos, estes sim, os verdadeiros invasores: 3 simples humanos que acharam que a natureza era feita de borboletas azuis, beija flores, passarinhos, flores alegres e resolveram fazer uma casinha perto do mato! Estes humanos, uns inocentes. E não esqueceram, claro, de ter também um cachorro, bem grande e levado. Vidinha serena, esta.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Viva o sol!


Lancaster, junho de 2009.

Chegou o sol, quatro dias consecutivos de sol!!  Imensa alegria!!!  As plantas estão eufóricas, margaridinhas super amarelas cobrem a grama verde. Coelhos ficam esparramados na grama, olhando  para quem passa de rabo de olho, checando se é mesmo necessário dar mais um salto. Os passáros voam baixo, gritando, cantando, voam em bandos, trocam idéias em altos brados, para quem quiser ouvir. As árvores explodem em cores, há as de cor violeta, estas se enchem de orgulho de suas  cores, lançam suas belíssimas flores até o chão! Os patos ficam pelo lago, tomam banho, voltam para a beirada para aproveitar o calor, balançam as asas daqauele jeito que só pato sabe fazer. As pessoas se misturam com as margaridas amarelas - jogam-se na grama, leem seus livros, beijam nas bocas dos seus amores queridos. Outros jogam bola, futebol, gritaria, torcida. Há o boomerang - e aí as pessoas ficam em círculo, rindo muito porque afinal de contas ninguém pega mesmo o boomerang , a grama verde é mais ágil do que todos e é sempre ela quem pega o brinquedo. Mas, que importa? Faz sol! Ao cinza se sobrepõe o amarelo, o azul, azulzinho cor de céu limpo, o amarelo das margaridinhas miúdas, a brancura das peles dos corpos daqui, os cabelos amarelos, ruivos predominam, aqui e ali, um cabelo bem pretinho, e acolá, algum cabelo azul, espetado para cima querendo misturar-se ao azul do céu. O som é de rock e o cheiro é de churrasco. Porque na grama há pequenas panelinhas que fazem churrasquinho gostoso, cheiroso, servido no espeto! Sol e piquenique! Algumas pessoas passam correndo, de shortinho, camiseta e pernas à mostra. Pelo caminho cruzam com os ciclistas, pedalando gostoso, aproveitando as ladeiras abaixo para deslizar por entre a grama que cobre o caminho de um lado e de outro!
Viva o sol!! É o grito unânime que ecoa de tudo isso: das margaridinhas amarelas, das árvores floridas, passáros, boomerangues, churrasquinho, livros, beijocas, tudo isso em suma, faz coro para gritar bem alto: Viva o sol!!!!!!
Me juntei a tudo isso, tirei fotos, registrei, sentei na grama para estudar, deleitei-me com as cores que tomaram conta do campus. Faltou só o meu amor para dar uma beijoca!