terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Do outro lado tem a beirada: os mal entendidos na nossa língua


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Descrição da imagem: Capa do livro de Amyr Klink, Cem dias entre Céu e Mar. Num fundo todo azul claro se lê o nome do autor, o título do livro. Em seguida um desenho pequeno, fino, delicado, em tons de vermelho: um barquinho à remo, com um homem sentado em seu interior, segurando dois remos, que mais se parecem palitos para comer comida japonesa (de tão delicados e finos!). A imensidão do azul claro do fundo da capa se contrasta com a pequenez do barco que no entanto, por ser vermelho, parece cheio de vida e força!


Não são poucas as vezes em que grupos de amigos brasileiros comentam os mal entendidos que vivem quando encontram com os parceiros de idioma, os portugueses. Foi numa dessas rodas de conversa que ouvi uma história, entre muitas outras que seguem esse mesmo tom:
Num restaurante em Portugal a pessoa se dirige ao garçom e fala:
- Tem suco de laranja?
E o delicado garçom  responde:
- Não, o suco não temos. Temos as laranjas, podemos fazer o suco.
Os lusitanos parecem tomar ao pé da letra o que nós, brasileiros, dizemos num sentido mais figurado. Daí toda a graça dos mal entendidos. Considero, no entanto, que os mal entendidos grassam é por toda parte e nem precisamos sair do Brasil para vivê-los. Talvez porque nosso país é um continente, não só no tamanho, mas também nos costumes, na música tão variável que se impõe ao português em cada canto do país, nas tradições, na culinária, enfim, cada canto do Brasil é um universo de diferenças, sutil e fragilmente costurado pela nossa identidade linguística. 
Lembro de uma viagem que fiz a Belém do Pará, para participar de um congresso. Lá estavam vários colegas de trabalho, alunos, amigos, era uma festa aquele encontro. Foi num táxi que dividi com a querida amiga Jo Conti que vivi alguns diálogos surreais e bizarros. No caminho que fazíamos ao Museu Goeldi, olhávamos o rio que cruza a cidade. Nunca tínhamos visto um rio tão tão largo! Parecia um oceano! Ficamos encantadas com a beleza daquele rio! Extasiada, Jo, que fazia sua primeira viagem para tão longe do Rio de Janeiro, pergunta ao taxista:
- Que rio largo! O que é que tem lá do outro lado?
E o taxista responde bem honestamente:
- A beirada. Do outro lado tem a beirada.
Jo e eu nos entreolhamos e rimos da resposta do taxista. Resposta correta e certeira, se pensarmos bem no que lhe foi perguntado! Jo, curiosa e completamente disponível para a conversa, segue na prosa com o taxista:
- O que é que tem para se fazer aqui, moço?
E o taxista, mais uma vez, direto e objetivo responde:
- Aqui tem peixe, tem jambu, o pessoal faz tacacá muito bem feito, tucupi, aqui tem maniçoba. Só comida boa. A senhora já comeu o peixe com jambu? Comeu não, foi?
E ele seguiu dando a receita do peixe e falando de mais mil e um pratos dos quais nós jamais tínhamos ouvido falar! Jo e eu rimos de novo! Então tem muita comida para se fazer aqui, que bom, vamos experimentar de um tudo nessas terras, foi o que pensamos! A viagem ficou mais leve e divertida com a prosa que levamos com o taxista! 
Na recente viagem que fizemos à Bahia, eu, o nego e o garoto vivemos alguns desses mal entendidos. Deliciosos mal entendidos! A Bahia tem praias de águas quentes, o que considero uma mágica legítima e verdadeira! Banho de mar em águas calmas, transparentes e quentes! Ah, a Bahia! Nas praias em que estivemos, além dessas águas mágicas, havia quiosques onde se alugavam cadeiras e barracas. Assim, era possível sentarmos à sombra, na beira da praia. Alugamos essas cadeiras e barracas alguns dias, nas praias que frequentamos no entorno da nossa pousada. Num dos dias da viagem, resolvemos conhecer outras praias e fomos mais longe, há uns 30 quilômetros de onde estávamos hospedados. Chegamos a um lugar belíssimo, Itacimirim, eternizado no livro de Amyr Klink, Cem dias entre céu e mar, por ser o lugar onde ele aportou quando veio de barco a remo da África ao Brasil! É nesta praia também que está o Bar e Buteco do Doró, também eternizado no livro de Amyr Klink! É preciso lê-lo para saber do recado a ser transmitido ao Doró, dono do buteco bem na beirinha da praia. Como amo esse livro, emocionei-me por estar ali, vibrei como se fosse eu a chegar da África, após cem dias de céu e mar! Meu nego foi logo buscar cadeiras e barraca para nos acomodarmos. Estávamos em frente ao Bar e Buteco do Doró, entre o quiosque Cabana da Franga Fogosa e o Bar Deus e as Águas! A Bahia também sabe nomear seus espaços de prazer! Logo fomos recebidos por um jovem, chamava-se Junior. Ele nos disse que trabalhava no quiosque em frente, se quiséssemos a cadeira era só falar com ele. Meu nego, então, querendo saber o preço das cadeiras, pergunta a Junior:
- Como é o esquema de pagamento das cadeiras aqui?
E Junior responde com clareza, para não deixar margem para dúvidas:
- É assim: o senhor me dá o dinheiro, vou lá no quisoque, faço o pagamento das cadeiras, volto e devolvo o troco para o senhor. Aqui funciona assim mesmo! É bem assim!
Rimos com a simpatia e a honestidade de Junior. Meu nego perdeu um pouco o rebolado, não sabia direito como dar seguimento àquela prosa. Olhou para mim e disse: Viu, Marcia? Aqui funciona assim! E eu logo disse ao nego:
- Vamos sentar aqui meu nego, vai dar tudo  certo! A gente paga, Junior traz o troco para a gente! Senta aí, relaxa! Brigada Junior, muito obrigada!
Pronto! Junior abriu-se em sorrisos, seguiu correndo para atender outro freguês e explicar o esquema das cadeiras na praia!
Meu nego, eu e o garoto ficamos ali, entre a Franga Fogosa, Doró, Deus e as Aguas, Junior, Amyr Klink, águas quentes, aquilo tudo que só a Bahia tem! O preço das cadeiras? Ah, era o mesmo cobrado nas demais praias, deu tudo certo! 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Para o fim de ano: Jorge Luis Borges

Garatujas do Cotidiano se despede antecipadamente de 2015. Faltam alguns dias para o recesso e para as férias. E desses tempos de entretempos, todos precisamos! Até a volta!

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Descrição da imagem: 
Foto de Jorge Luis Borges, como um busto. O autor está sorrindo, com as mãos pousadas sobre a bengala. A foto tem uma energia boa.

FIM DE ANO
Jorge Luis Borges

Nem o pormenor simbólico
de substituir um dois por um três
nem essa vã metáfora
que convoca um lapso que morre e outro que surge,
nem o cumprimento de um processo astronômico
atordoam ou minam
o planalto desta noite
e obrigam-nos a esperar
as doze irreparáveis badaladas.
A causa verdadeira
é a suspeita geral e confusa
do enigma do Tempo;
é o assombro em face do milagre
de que apesar de todos os acasos,
de que apesar de sermos
as gotas do rio de Heraclito,
perdure em nós alguma coisa:
imóvel,
alguma coisa que não encontrou o que procurava.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O vozeirão de jaleco: cada ano é um ano

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Descrição da imagem: A figura é de uma charge. Um homem careca, de óculos e jaleco faz um exame de imagem numa boneca matrioska, que está deitada. O homem segura uma parte do equipamento do exame sobre a barriga da boneca, com a outra mão toca o teclado do equipamento e olha para a tela. Nesta última, o que se vê não é imagem do corpo da mulher, mas a reprodução da cena que vemos: o homem de jaleco olhando a tela, a boneca deitada.  E na tela que está na tela, a cena se repete. Assim, a cena vai se repetindo ao infinito, lembrando George Perec, em A Coleção Particular, leitura que recomendo. A própria imagem é como a matrioska, a boneca russa: uma dentro da outra, sem fim, se repetindo.


Já rendi homenagens à Fernanda Torres pela escrita do texto "Calores" (ver aqui). Pois hoje reitero as reverências. Fui fazer exames de imagem, todos de rotina para uma mulher como eu, já quase nos 50 anos. A chegada ao laboratório onde faria os exames foi marcada pela descontinuidade: do calor tropical das ruas ao inverno glacial daquele local branco, ladrilhado, cheio de gente e com vários balcões e recepcionistas. Num balcão recebo a ordem: apresente a carteira do plano de saúde; em outro, assine um papel, suba uma escada; mais uma sala, outro balcão, mais uma ordem. Fui seguindo o fluxo, arrepiada com a temperatura glacial emitida pelos gigantescos aparelhos de ar condicionado que estavam em todas as salas. Finalmente, depois de um périplo de balcões e recepcionistas, cheguei à sala de exame e foi neste local que encontrei o vozeirão de jaleco. Deitada numa maca, pronta para o exame, ouço um sonoro, grave e alto: BOM DIA, SRA. Levei um susto com aquela voz grave. Era um rapaz, talvez entre os 35 / 40 anos, que entrava na sala para fazer o exame. Um pouco careca, de óculos, vestindo o jaleco branco, o rapaz tinha um vozeirão que combinava pouco com a sua figura. O exame se inicia com o lançamento de um gel sobre a  minha pele, para que o equipamento de imagem funcione melhor. O gel estava mais ou menos à temperatura de - 20 graus, o que acrescido do gélido da sala, gerava uma temperatura de - 40 graus! Cheguei a comentar com o vozeirão de jaleco que o ar era muito gelado e ele me disse que os equipamentos precisam dessa temperatura. Logo imaginei que o equipamento também precisa da temperatura do gel. Tudo bem, há que se fazer algumas concessões aos equipamentos. Segue o exame, o vozeirão quase não fala, olha para a tela do computador, toma notas, olha para tela, arrasta aquele aparelho no meu corpo e assim seguimos. Até que o vozeirão conclui algo: A SRA. É UMA MULHER HORMONALMENTE ATIVA. Bingo! Foi o que pensei, já supondo que isso devia ser comemorado. Nem sabia que daquele exame poderia sair a minha aprovação hormonal. Mas o vozeirão não encerrou neste ponto as suas conclusões, seguiu num brado retumbante:  É, SRA., MAS DAQUI PRA FRENTE, CADA ANO É UM ANO, SÓ PIORA! TEM QUE ACOMPANHAR! Cacildes, estarrecida, emudeci. Que destino me foi traçado, ali na lata, na cara, o vozeirão de jaleco me fez saber que daqui para frente, só há piora. O que? Eu? Meus hormônios? A vida? O Brasil? Um pouco de tudo isso? Não consegui dizer palavra. Terminado o exame, fiz o percurso reverso, desci escadas, revi de trás para frente os balcões, as recepcionistas, a montoeira de gente e finalmente alcancei a rua. No lugar da descontinuidade que marcara minha chegada àquele mundo de ladrilho, experimentei um delicioso reencontro com o  calorão da rua, que me trouxe de volta ao mundo a que pertenço, à vida da cidade, à minha vida. Um alívio. Mas o destino que me fora traçado pelo vozeirão de jaleco reverberava em minha cabeça. Até que finalmente decidi que não podia deixar que o vozeirão, sozinho, decidisse meu futuro e meu presente. Nada disso, dos meus tempos cuido eu. No final das contas, cada ano é um ano desde que nascemos! Cada ano é um ano, disso não resulta nenhum grande dramalhão. Cada dia é um dia, cada mês é um mês. Pois bem, disse em pensamento ao vozeirão de jaleco: se cada ano é um ano o que nos resta é vive-los! Bem vive-los, ora bolas! Desse modo, lanço ao mundo inteiro uma outra possibilidade de conclusão frente ao dito do vozeirão:  se cada ano é um ano, CARPE DIEM! Outra possibilidade, outro mundo.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Pelas portas, pelas paredes, pelas telas: poesias cotidianas

O que  leva uma pessoa a escrever uma frase, um poema, uma rima atrás das portas dos banheiros? Quando eu era criança achava que aqueles escritos estavam ali porque eram para ser escondidos, eram proibidos. Meus olhos infantis viam nos palavrões que naqueles espaços grassavam a fina flor do proibido. Escritos no avesso da porta, dali não deviam sair, era o que eu pensava. Mas hoje penso diferente. Os escritos nos avessos de portas de banheiros estão ali para nos alcançar, quem sabe para fazer daquele momento de solidão um ponto de virada. Pois que minha vida tem se virado e revirado com esses dizeres. Não sei se traio seus autores ao desejar retirá-los do avesso e colocá-los para circular no mundo. Não sei. Arrisco-me na profanação daqueles escritos agitada pelo desejo de que eles façam mover outras pessoas, que não puderam ainda encontrá-los.
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Descrição da imagem: Em tinta azul, escrito à mão, le-se: a razão é rasinha, amor.

Que a razão seja rasinha, eu desconfiava, intuía, mas jamais esta forma de enunciação chegou-me à boca. Filosofias de botequim por vezes dizem que a razão é elevada, superior. Ou afirmam o seu contrário, absolutamente simétrico: que a razão não é nada, nada sabe, é inferior. Pelo avesso dessa porta fiquei sabendo que a razão é rasinha, está ali, amor, à vista, rasinha, rasinha. Talvez não chegue a pronunciar nada de muito relevante, mas está ali, rasinha. Chego a essa conclusão pelo avesso da porta e como a frase é dita ao amor, sorrio, com malícia, com graça, como quem descobriu alguma coisa nova. A razão é rasinha, está ali, ao alcance, rasinha, rasinha. Sem pânico, sem subserviência, sem alarde me sinto interpelada: pelo amor e pela razão rasinha.

Empadas parentes

Tempos atrás estive numa banca de doutorado de uma pessoa querida, Fátima Queiroz. O trabalho, belíssimo, retomava a brincadeira com a pipa para discutir diversos temas na psicologia social. Foi com esse texto que, entre outras coisas, aprendi que existem brinquedos parentes. Explico-me. Segundo a autora da tese, ou melhor, segundo o que me lembro de ter lido na tese, quando um grupo de meninos se reúne em torno da pipa ou quando as pessoas se reúnem num festival de pipas, diversas brincadeiras e brinquedos parentes surgem ao lado do personagem central, a pipa. São brinquedos parentes porque retomam o voo aos céus, o alcance do ar: boomerangues, peões e bolas passam a ter com a pipa uma relação de parentesco porque ocupam junto com ela, o cenário. Desta forma, enquanto uns se divertem com a pipa, outros jogam boomerangues, peões, bolas, pulam corda, sempre lançando ao céu a imaginação e a brincadeira . Não é qualquer brinquedo que é parente do outro. É justo isso que me leva a pensar que existem as empadas parentes. Hoje, como já disse que faço todos os finais de semana (ver aqui), fui comer a minha empada. Logo notei que a esquina onde ficam as personagens centrais são povoadas pelas empadas parentes, que crescem e se multiplicam a cada dia. Assim, ao lado da carrocinha da empada, há um carro com a mala aberta, onde podemos comprar abacaxis docinhos, vindos, segundo nos disse o vendedor, do Espírito Santo. Três abacaxis por 10 reais. Já provei dessa delícia e recomendo a quem por ali passar: são realmente excepcionais! Logo na sequência, um jovem rapaz veste bermudas e um avental azul para vender suas costelas na brasa. Também já provei essa iguaria e na conversa com o vendedor, ele me explicou que as costelas, para ficarem macias e saborosas, precisam cozinhar na brasa, envoltas no alumínio, por 12 horas! 12 horas de preparo! Isso ele faz em casa. Ali na rua, com uma churrasqueira feita numa espécie de galão, ele segue aquecendo e finalizando o cozimento das costelas. São verdadeiras iguarias! Dignas dos mais refinados chefs de cozinha! Já comi desta saborosa carne mais de uma vez. Outro dia mesmo deixei para comprar uma costela por volta das 13horas e tinha acabado! Sim, vendeu tudo, tudinho! Fiquei com água na boca e me guardei para o final de semana seguinte, que ainda não chegou, mas virá, ah virá! Na calçada em frente há uma senhora que vende doces feitos por ela mesma: pudim de leite, bolo de aipim com coco e mais umas outras guloseimas maravilhosas, das quais ainda não provei. Desse modo, a esquina próxima da minha casa vai sendo povoada pelas empadas parentes, tudo é para comer, para o deleite do paladar. Com as empadas parentes as esquinas se enchem de histórias e de vida. Foi assim hoje: mal sentei no banquinho à espera da minha empada, um senhor ao meu lado, com a empada dele na mão, olhou para mim, abriu um sorrisão e me disse cheio de alegria e gula: Tá quentinha! Acabou de sair agora! Que beleza de fala, pensei! Brinquedos parentes, vida, histórias e invenções deliciosas na nossa língua: Acabou de sair agora! Imaginem quão agora foi este agora!! Tá quentinha!!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O bicho papão do climatério

Muito em breve me tornarei uma mulher de 50 anos. Gostaria de ter escrito esse texto. Não o fiz, ainda bem que a Fernanda Torres o escreveu, abrindo espaço para partilharmos alguns espantos com o bicho papão do climatério.

Texto publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo, em 25/09/2015, disponível on line em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/234234-calores.shtml

Fernanda Torres

Calores

O doutor desconfiou e tirou a prova. Ganhei nota zero nos exames hormonais. Era ele, o bicho papão do climatério
Meus 50 anos, completados no dia 15, chegaram com a força de uma tempestade perfeita.
A data coincidiu com o rebaixamento da nota de investimento do Brasil, a desvalorização do Real, a ameaça de impeachment e os calores furtivos da maturidade.
Um dia antes do cumpre anos, Joaquim Levy apresentou o plano para sanear o Orçamento de 2016. Eduardo Cunha reagiu com o sorriso cínico habitual, e tive receio de que o presidente da Câmara exigisse, via Embratel, a cabeça da presidenta numa bandeja de prata para aprovar a proposta.
A insônia, algo novo em minha vida, virou rito diário. A consciência desperta às 4h30 e entra num vórtex de preocupações. A certeza do abismo para o qual caminha o país, o corpo, a profissão e o futuro dos filhos.
O doutor desconfiou e mandou tirar a prova. Surpresa, ganhei nota zero nos exames hormonais. Era ele, o bicho papão do climatério.
Temo tocar no assunto e virar porta-voz de um fenômeno vivido em sigilo pela maioria absoluta das mulheres.
A mudez é a mãe da ignorância. Numa época em que o sexo é encarado com naturalidade e a causa gay defendida no horário nobre, surpreende o quanto a menopausa se mantém velada, secreta.
Algo perdida, cliquei na página de Drauzio Varella e quase me atiro pela janela com a descrição do que está por vir: a já conhecida insônia, osteoporose, perda de libido, depressão, irritação, gordura localizada, problemas coronarianos, uma sucessão de horrores difícil de encarar.
Encontrei-me com Drauzio no casamento de um amigo e pedi que ele tivesse a compaixão de rever o resumo. Ele prometeu checar, observando que o fim do ciclo reprodutivo da mulher é um dos processos mais preteridos pela ciência.
A medicina é uma cadeira dominada pelo sexo masculino, disse ele. Se os homens sofressem as mesmas transformações, Drauzio disse ter certeza de que os laboratórios teriam se dedicado com mais afinco a atenuar os sintomas.
Mas o que me toca não é tanto a reviravolta feminina e, sim, a constatação de que o século 20, aquele em que me firmei como gente, é, hoje, tão ultrapassado quanto o século 19.
A crise moral à direita e à esquerda marca o fim dos ideais traçados lá atrás, na Revolução Francesa.
Assisto à loura gelada do horário eleitoral do PMDB, seguida por Cunha falando do país que ele sonha para si e farejo o surgimento de uma onda niilista, agressiva, punk. Um desejo de terra arrasada por parte da população.
Feliz, reunida em torno do bolo com os amigos de uma vida inteira –jornalistas, cineastas, diretores, escritores, atores, músicos e produtores–, tive a impressão de que brindávamos em meio ao Baile da Ilha Fiscal.
O desmanche da indústria fonográfica, na virada do milênio, acontece agora nas Redações de jornal, nas produtoras de TV, no mercado editorial, na publicidade, no teatro, no cinema, no mundo como eu o conheço.
É claro que outras formas de pensar surgirão, mas impressiona testemunhar a história.
Outro dia, vi uma foto de Bibi Ferreira criança no colo de Procópio. Me senti toda ela, filha do circo, vinda de outra civilização.
Envelhecer.
Jamais achei que fosse acontecer comigo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Sra Marcia?

Tenho antipatia por telemarketing, aquele telefonema que te alcança em casa, quando você está de chinelo havaiana no pé, complemente dedicado a estar em casa com o chinelo. A ligação começa sempre do mesmo jeito: Sra. Marcia? Ouço isso e já sei, lá vai mais uma oferta imperdível, revistas, cartões de crédito fantásticos, seguros de vida incríveis para o caso de minha morte ou invalidez, entre outras maravilhas. Foi uma dessas maravilhas que veio ao meu encontro dias atrás, por meio de uma nova modalidade de telemarketing. Atendi o telefone, naquele desaviso que a gente fica quando está em casa e ouço a voz numa vibe super amiga, tipo íntima: Olá! A voz era íntima e estranha, fiquei parada ali. De súbito me dou conta de que era uma máquina, daí o que me parecia estranho era a entonação, que para se assemelhar ao natural, levava o tal do natural ao absurdo, ficando absurdamente artificial. Nenhuma amiga me fala aquele Olá tão feliz, assim do nada, sem mais nem menos. Mas a voz super amiga  continua: estou aqui hoje para lhe oferecer saúde! É, saúde! A voz estava super animada com a oferta que logo me faria. E ela seguia: mas se você não quiser prosseguir na ligação disque o zero! É preciso escrever as falas da voz super amiga  sempre com exclamação porque ela só falava exclamando! Então, até para definir como eu devia desligar o telefone ela exclamava. Pensei, mas que raios, se eu quiser desligar não preciso discar o zero, posso simplesmente desligar o telefone, pois não? Fiquei mais um pouco e a voz me diz: Tome vitaminas! Ora, ora, eu lá quero vitaminas? Capsulas de saúde? Me liga, essa super amiga desconhecida, para me ofertar capsulas de saúde e me dizer como devo desligar o telefone!!! (agora exclamo eu!). Plaft! Desligo o telefone à moda ogro, não quero vitaminas, não quero vitaminas nem ninguém nos meus ouvidos exclamando o tempo todo. Deixo tocar na caixa de som roliça, aquela blutifi de que falei aqui, nosso bom e velho Tim Maia: Não adianta vir com guaraná para mim é chocolate o que eu quero beber, chocolate, eu só quero chocolate, só quero chocolate!!! Foi uma verdadeira libertação, uma libertação daquela estranha voz amiga, da prescrição das cápsulas e das exclamações de intimidade.