terça-feira, 15 de novembro de 2016

Garatujas vazaram para o Facebook!!!


Aviso aos navegantes desse blog! As Garatujas do Cotidiano vazaram para o facebook!
Corre para o face, a página é pública, você nem precisa ter conta no facebook para  acessá-la e há muito mais histórias por lá. Clique no link que está logo a seguir.

Pronto! Garatujas estarão abertas para você!












































quinta-feira, 9 de junho de 2016

O voo da alma

Foi uma experiência de separação entre o corpo e a alma. Jamais imaginei que se pudesse viver essa separação de forma tão intensa.  Entre formulários, espera e medo, fui seguindo as rotinas numa entrega de meu corpo, despido de adereços. Porém, nele seguiam as tatuagens e suas histórias, as cicatrizes, as formas, tudo o que sempre foi meu.  O desnudamento não apagaria nenhuma dessas marcas. Passo a passo, etapa a etapa ia me inserindo naquele universo. Em meu pulso instalaram uma pulseira, ou antes, uma etiqueta onde se podia ler meu nome e mais alguns números de registro. Talvez esse novo adereço marcasse o meu pertencimento àquele universo. Mais do que meu nome, eram os números que davam as coordenadas sobre quem eu era, pelo menos ali dentro. A derradeira entrega àquele cenário veio com a inalação do gás que me desligaria de tudo e que permitiria o ato cirúrgico. Um apagamento do mundo. O retorno ao meu corpo veio de súbito. Abri os olhos, era eu ainda quem estava ali. Viva, buscando sentido nas luzes intensas, nos verdes, azuis e brancos dos uniformes e lençóis que me rodeavam. De olhos abertos, voltei a me pertencer. Segui mais outras tantas rotinas, espera, abre porta, o mensageiro, a maca com rodinhas, fecha portas, elevador, luzes fortes, brancura, ploc ploc ploc ploc, a maca deslizava em velocidade sobre o chão. Quando alcancei o quarto tive a impressão de que voltei a me pertencer em mais um grau. Ali estava meu nego, meus pertences e adereços, pedaços de mim. A fome já me acossava. Serviram-me um lanche mísero se considerado à luz do vazio que me tomava o estômago. Sem pestanejar, comi aquelas migalhas como se regalos fossem. Chegada a hora da alta, ofereceram-me uma cadeira de rodas que me levaria até a porta de saída, 10 andares abaixo de onde estávamos. Recusei, sentia-me forte, já estava de pé, munida dos pedaços de mim que haviam se dispersado poucas horas antes. Aquela etiqueta em meu pulso não me tirava do comando. Decididamente, podia caminhar de volta para  casa, foi o que pensei. Ledo engano. Ao cabo de alguns passos pelo corredor, um vento gelado teve início dentro de minha barriga. Partindo do centro, do umbigo, era um vento, um frio e, ao mesmo tempo, um suor. Tive tempo de falar que precisava de uma cadeira. De súbito meus joelhos se dobraram à minha revelia. Não permiti que me fizessem cair, estiquei-os de novo, eu estava - ainda - no comando do meu corpo. O vento frio se espalhava da barriga para todo o corpo. Era rápido, uma invasão. A cada lufada daquele ar gelado, era eu quem ia embora, era o comando que me escapava, eu ia para algum lugar, não sabia onde, mas eu ia.  Eu ia embora. A minha volta as coisas iam se apagando, se apagando, se apagando. De súbito entrei numa paisagem de serra, uma montanha, muito mato, tudo verde a minha volta. Era bonita aquela paisagem. Estranhamente eu deslizava nela, ainda que o frio me tomasse inteira. Eu não tinha mais corpo, estava leve, muito leve. Voava. Era eu e a montanha, uma largueza de mundo, um infinito que se abria em mim com aquele vento gelado. Um fio tênue, muito tênue, parecia conter aquele voo. Eram vozes, podia ouvi-las, sem nada discernir do que diziam. Um zum zum zum que me parecia vir de fora do meu voo, não pertencia à montanha por onde eu passeava. Um zum zum zum apressado. Eu percebia que havia pressa fora do meu voo. O fio era tênue porque a força daquela montanha era como uma atrator: me puxava em sua direção. Subitamente ouvi de novo um ploc ploc ploc ploc, eu deslizava, correndo, correndo. Alguns pedaços do mundo de fora da montanha iam voltando. A cadeira onde me sentaram corria pelo chão, um vento mais quente do que o frio do meu corpo alcançava meu rosto: era como um chamado.  Eu ia e vinha, entre a montanha e o ploc ploc ploc da cadeira no chão, entre o vento frio que me invadia e o vento quente que alcançava meu rosto. Um homem de roupa azul colocou meu braço em torno de seu pescoço. Não vi o seu rosto, não vi quem estava a minha volta e não sabia bem que voo era aquele. Seria mais uma volta pela montanha? Outro pedaço do mundo, eu estava deitada numa cama. Uma roupa branca, um estetoscópio, a mão de alguém. Eu pegava e largava os pedaços de mundo. Ia e vinha entre a montanha e aquele universo do hospital. Eram aquelas vozes que ligavam esses dois mundos. O zum zum zum da ligação entre meu corpo e minha alma. Quanto mais perdia a montanha, mais eu voltava para o meu corpo. Onde era a partida? Onde era a chegada? Minha alma e meu corpo iam se encontrando na medida em que o zum zum zum se reunia em sons com sentido, eram palavras. As imagens em pedaços ganhavam forma, um médico, um enfermeiro, meu nego. Cheguei. Comigo, as palavras de Leminski: o tempo, entre o sopro e o apagar da vela.

domingo, 8 de maio de 2016

As pequenas virtudes no país das maravilhas


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Descrição afetiva da imagem: Um conjunto de cartas de baralho, viradas de costas mostram desenhos em cor vermelha. São 16 cartas, em 4 colunas com 4 cartas cada uma. É uma capa de livro. Uma das cartas, no entanto, está virada e é de paus. Como uma janela que se abre, ela nos permite ver os olhos verdes, o nariz afilado e os belos lábios de Alice. É ela quem nos espreita. Estaríamos todos nós num país das maravilhas?

Cheguei em casa e encontrei um pacote dos correios em cima da mesa. Pelo formato da embalagem logo concluí que eram livros. Ou melhor, o livro que eu havia comprado on line: Natalia Ginzburg, Pequenas Virtudes, publicado pela recém extinta Cosac e Naif. Aguardava o livro com curiosidade, aguçada pela belíssima resenha que lera em um jornal literário. Olhei o destinatário que constava na embalagem na certa de que ali veria meu nome. Para minha surpresa, o nome que estava no papel era Waldomiro Silva. Que estranho, pensei. Deve ser algum vizinho. Examinei cuidadosamente os escritos que vinham na frente do pacote. O remetente era a Cosac, logo, meu livro! Mas Waldomiro? O que será que fazia Waldomiro naquele papel? O endereço era o meu, a rua, a casa, o CEP e o telefone, tudo me ligava aquele embrulho, à exceção do nome. A primeira providência que tomei foi interfonar para a portaria e perguntar se havia entre os vizinhos algum Waldomiro Silva. Não havia. Hesitei diante do pacote, sem saber o que fazer com ele. Decidi abri-lo, ponderando que com tantas informações concernentes à minha vida, talvez, em alguma medida, o volume me pertencesse. Cuidadosamente abri a caixa, sem rasga-la, mantendo intacta a etiqueta com as informações do remetente e do destinatário. Eram dois volumes: Alice no país da maravilhas e Alice através do espelho de Lewis Carroll, em um único livro; e A Metafísica do Belo, de Schopenhauer. Huumm, bom gosto tem Waldomiro! Até gostaria de conhece-lo! A edição de Alice era lindíssima, o próprio livro já uma obra de arte. Papel de primeira qualidade, gravuras coloridas e  belíssimas, excelente tradução e um cheiro maravilhoso! Sim, sou daquelas que cheiram livros e me seduzo também por livros cheirados. Folhei Alice, li umas partes e voltei a encantar-me com a obra, lida por mim tantos anos antes. Adormeci inebriada com o presente que me chegara às mãos. No dia seguinte de manhã, liguei para a Editora para desfazer o mal entendido e  remeter ao Waldomiro - já o sentia como um amigo - os livros que lhe pertenciam. A Cosac estava em clima de fechar as portas e o telefonema foi pouco efetivo. De atendente em atendente não cheguei a lugar algum. Não havia registros de Waldomiro Silva na Cosac. O que fazer? Uma das funcionárias da editora comentou das dificuldades com os fins, eles são mesmo sempre delicados, na vida e na editora. Pediu-me que aguardasse, anotou meu telefone e disse que me ligaria em seguida. Não ligou nunca mais. E também seria nunca mais - ou quase - o que se passaria entre mim e Pequenas Virtudes. Nunca mais o veria embrulhado num pacote em cima da mesa da sala, foi o que imaginei. Passados mais de três meses, o livro da Natália Ginzburg não havia chegado. Nas agilidades do mundo on line, mais de três meses correspondem sem dúvida, a nunca mais. Resolvi aceitar o acontecido. Então era isso, quis o destino que eu ficasse com Lewis Carroll e Schopenhauer e, quem sabe, outra pessoa (Waldomiro?) com Natalia Ginzburg. Aceitei o ocorrido, acolhi aqueles dois livros como se eu os tivesse desejado desde o início e deixei que o destino me fizesse ler Natalia Ginzburg algum dia, de algum modo. Eis que passados mais de quatro meses desde o dia em que fiz a compra on line, recebo uma ligação no meu celular. É a Marcia Moraes quem fala? A voz era de uma mulher. Sim, Marcia Moraes. Quem é? E a resposta veio singela: Sou Alexandra e estou com um livro seu. Livro meu? Estranhei, pensei que fosse uma pessoa conhecida, quem sabe com um livro emprestado, decidida a me devolve-lo. Alexandra? perguntei, puxando pela memória sem nada encontrar. Sim, Alexandra, mas você não me conhece. Você não comprou um livro chamado Pequenas Virtudes? Ah! Pequenas Virtudes! Meus olhos se encheram de vida e alegria! Sim, sim, comprei, mas ele foi extraviado, sumiu. E ela me disse: Não sumiu não. Eu o recebi e estou com ele aqui. Fiquei intrigada e perguntei: Ué, mas como você me achou? Na embalagem havia meu nome, telefone, todos os meus dados, à exceção do endereço, que era o da Alexandra! E foi assim que Pequenas Virtudes chegou-me de volta às mãos, mais uma vez por uma decisão do destino, cujos percursos e voltas me eram enigmáticos. Li e encantei-me com as narrativas precisas de Natalia Ginzburg. Alegrei-me quando soube que Alexandra o lera antes de me devolve-lo, por isso a demora no contato para me devolver o livro. Alexandra também aceitou o que o destino lhe colocou nas mãos! Fiquei, no entanto, com um problema. O que fazer com os livros que recebi no nome do Waldomiro? Devolve-los não era possível, não consegui achar o Waldomiro. Envia-los de volta à Cosac talvez não os colocassem nas mãos de leitores desejosos por suas linhas. Foi então que decidi que os daria de presente a leitores cujas paixões pelos livros, pelas histórias, pela filosofia, pelo que há de belo nas voltas do destino eram tão intensas quanto as minhas e talvez - eu preferi pensar que sim - as de Waldomiro. Assim, os livros encontraram outras mãos, outros olhos, mas mantiveram-se entre os amantes da literatura, como Waldomiro e eu. Em todos esses encontros desencontrados quem sabe não foi a vez dos livros caírem num buraco rumo a um país das maravilhas no qual os personagens somos nós, Alexandra, Waldomiro, eu, os presenteados? Quem sabe?

sábado, 7 de maio de 2016

O amor pelos livros


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Descrição (afetiva da imagem): Tempos atrás fui ao MAM, no Rio de Janeiro, para uma exposição de Waltércio Caldas chamada "Livros". Inesquecível, a exposição mostrava livros como obras de arte, belas obras de arte, inusitadas, lindas, davam a ver o que não sabíamos que podiam ser e fazer os livros. A imagem acima é uma obra dessa série de Caldas. É um livro de acrílico esverdeado, transparente. O livro de acrílico não tem folhas, nem páginas. Na capa lemos o que também é o título da obra: Como imprimir sombras. Refletidas pela transparência, as palavras, ou suas sombras, podem ser lidas também na capa de fundo do livro. É que talvez os livros façam existir esses possíveis, esses talvez óbvios possíveis que não vemos, não fosse a simplicidade e a genialidade do artista.

Num telejornal qualquer, tempos atrás, assisti a uma entrevista. A repórter apressada corria atrás de um homem bem vestido, que parecia se esquivar daquela abordagem. Ele se detém por um minuto, corpo tenso indicando que o impulso era sair logo dali. O homem era um dos donos da Editora Cosac e Naif que acabara de encerrar suas atividades no Brasil. As perguntas de sempre eram dirigidas ao homem e as respostas também de sempre não diziam nada que as manchetes dos jornais já não estampassem: a crise econômica não dava tréguas. Não cheguei a me ligar naquele jogo banal de perguntas e respostas, mas fiquei ali, jogada no sofá, entregue ao meu próprio pesar pelo fim da editora, cujos livros eu admirava, comprava, lia. Eram livros para quem gosta de livros, para quem gosta de ler, para quem gosta de arte. E eu me incluo no grupo dos que tem esses gostos. De modo inesperado, uma pergunta da repórter suspendeu o imediatismo das respostas, produziu um silêncio do entrevistado e foi justo esse silêncio que eu ouvi. Eduardo Coutinho dizia que o silêncio depois de uma fala é a coisa mais importante de se ouvir. Eu ouvi. A repórter pergunta ao homem: o que é que permanece depois de todos esses anos de atividade da editora Cosac e Naif? O que fica de toda essa história? O homem cala. Eu calo com ele. Estou inteira ao lado dele. O silêncio. A correria da repórter foi detida por aquele silêncio. Sem dizer palavra, os olhos do homem bem vestido ficam molhados. Ele abaixa a cabeça, o microfone permanece diante de sua boca. É um tempo precioso, 30 anos de atividade da Cosac, de algum modo, apareciam nos 30 segundos de silêncio. Apareciam com força, rasgavam a cena, me pregavam naquela suspensão. O homem levanta os olhos, já adianta os passos para se retirar daquele encontro e diz: fica o amor pelos livros. Da poltrona onde estava deitada, partilhei com ele aquele amor e o vi partir, bem vestido, naquele dia chuvoso.

sábado, 30 de abril de 2016

Tempo, tempo, tempo: és um dos deuses mais lindos [e mais misteriosos]



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Descrição da imagem: É uma cena de uma menina abrindo uma porta. Pela postura de seu corpo, ligeiramente inclinado avançando para o mundo que do outro lado se descortina, é possível sentir toda a sua curiosidade. Ela usa vestido rodado, meia calça branca e sapato. As pernas finas sob o vestido, meio dobradas, parecem antecipar e temer os passos que logo ela dará rumo ao mundo depois da porta. O ambiente é de meia luz, teto direito bem alto, o que dá a menina uma estatura menor, pequena diante daquela imensidão que o ambiente anuncia e [tenta] aprisionar. Do lado direito da cena, por uma janela, entra uma luz forte, intensa. Anuncia que há um fora daquele ambiente. Não sabemos se o fora da janela é o mesmo que se vislumbra pela porta, por onde também passa uma luz, um facho de luz mais franco do que o da janela e muito, mas muito, convidativo.

Passados quatro meses desde o último post no Garatujas, dou-me conta de que nesse período o cotidiano não foi, de modo algum, livre de histórias. Ao contrário, sob o sol de um verão interminável, as histórias povoaram esses dias. Mas o tempo para escreve-las, ah... o tempo! Um dos deuses mais lindos, o tempo é cheio de mistérios. Há dias que escorrem pelos dedos das mãos, outros que ficam conosco nos limites do infinito. Faço com Caetano a bela oração ao tempo, esse compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, em busca de um acordo que nos una num outro tipo de vínculo. Nos últimos dias que antecederam às férias, tão sonhadas férias, deitei-me em orações ao tempo. Adormeci rapidamente com o corpo extenuado pelo trabalho intenso, os olhos e a mente exauridos pelas leituras obrigatórias e pelas milhares de mensagens que nos chegam por todos os poros nestes dias de conexão digital. Naquele estado entre o sono, que já me pesava nas pálpebras, e a vigília, eu fazia as minhas orações ao tempo, cantarolando em silêncio: tempo, tempo, tempo, peço-te o prazer legítimo e o movimento preciso, tempo, tempo, tempo. A oração ao tempo foi sumindo lentamente, desaparecendo com a decisiva e derradeira  aproximação do sono. Enquanto as últimas palavras e acordes da oração ao tempo tomavam minha alma, meu corpo já entrava num mundo de Alice, num universo de Nárnia. Era o meu quarto, a minha cama, as férias que já se aproximavam e, com as férias, os sonhos.  Planejamos que iríamos para a serra, para o mato, em busca de frescor e de águas doces. E foi justamente para uma floresta que meus sonhos me levaram, agora de corpo e alma.  Eu atravessara uma porta. Estávamos juntos, felizes, eu e meu nego diante de uma imensa e exuberante floresta. Era um mundo enorme que se abria diante de nós onde era possível sentir a umidade das folhas das árvores, ouvir o canto dos passarinhos, ver a infinidade de tons de verde que coloriam a cena.  Leve, alegre e talvez ainda sob um cantarolar da oração ao tempo que se fazia em mim à minha revelia, perguntei ao meu nego: Nego, entre todos os deuses que moram nessa floresta, qual deles você acha que pode exigir de nós mais submissão? Pude olhar para meu nego, ver seu sorriso, sentir sua mão segurando a minha, mas não o ouvi dizer palavra: o despertador ao meu lado soara um alto e estridente alarme.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Cenas da barca (II): o pulso e a brisa

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Descrição da imagem: É um dia de céu azul. À direita, a barca navega nas águas da baía de Guanabara. A cena mostra apenas uma parte da barca, como se ela chegasse na imagem, sem ter concluído a sua passagem. Ao fundo, uma parte da Ponte Rio-Niterói, onde podem ser vistos muitos e muitos carros. Parece que há congestionamento na Ponte. Na barca a placa que a nomeia indica o que seu passageiro vivencia: Boa Viagem. Será?

Tenho colegas de trabalho que estudam as relações entre subjetividade e espaços urbanos. O tema é instigante já que nossa vida na urbe é atravessada por idiossincrasias, como a que vivi no dia de hoje. Fui ao Rio de Janeiro de barca, como tenho feito rotineiramente a fim de fugir dos congestionamentos intermináveis que imobilizam carros, ônibus e qualquer outro veículo com quatro rodas. O céu nublado minimizava o calor do verão, havia uma brisa no ar e eu seguia sem nenhuma pressa para a cidade vizinha. De vestidinho colorido, sapato baixo, meus cabelos ainda guardavam o cheiro do shampoo que usara no banho recém tomado. Meu corpo tinha o frescor de uma manhã leve. O que me conduzia ao Rio de Janeiro não era nada que necessitasse das malvadas exigências do relógio que adornava o meu pulso. Era um encontro que podia esperar, não tinha urgência e eu havia saído de casa cedíssimo para aproveitar a manhã. Porém, o que eu não sabia é que havia um relógio maluco a pulsar dentro do meu pulso. Isso mesmo, havia um relógio a pulsar dentro do meu pulso. Disso só me dei conta quando, ao me aproximar da estação das barcas, ouvi o som que vinha das roletas. Era um aviso sonoro, uma sirene, que indicava o iminente fechamento das roletas. Junto com o aviso sonoro, luzes vermelhas, em formato de X, piscavam em cima de cada roleta. Quanto tempo restaria para as roletas fecharem?  Foi a pergunta que me fiz com os olhos esbugalhados refletindo as luzes vermelhas que piscavam nas roletas. A sirene invadia meus ouvidos e  por esta porta de entrada, me tomava o corpo. Era preciso correr. Meus pés saíram em disparada, me reuni às pessoas apressadíssimas que, ao meu lado, também corriam. Era movida pelo relógio que pulsava dentro do meu pulso, era ele e não o outro, que me fazia correr. Corri sôfrega, era preciso alcançar aquela roleta como se não houvesse mais nenhuma barca no mundo, como se meu compromisso na outra cidade fosse questão de vida ou de morte. Corri impulsionada pelos meus pés, pelas minhas coxas e pelo relógio a pulsar dentro do meu pulso. Alcancei a roleta, encostei o cartão na máquina e quando vi que o valor da passagem fora debitado, avancei sobre as barras de ferro e joguei meu corpo para dentro da estação. Foi como seu eu tivesse ganho uma corrida de obstáculos! Alcancei a barca! Ou melhor, alcancei aquela barca, a última barca do mundo! Segui reunida com a massa de gente a minha volta e notei que a prova continuava. A corrida agora era para conseguir um assento na barca. Passos apressados a minha volta, corpos que se lançavam nas fileiras de cadeiras em busca do assento que aliviaria aquela sofreguidão por 20 minutos. Findo esse tempo, possivelmente o rally teria continuidade. Seria preciso descer da barca correndo para alcançar mais alguma coisa que eu não sabia ainda o que era. No entanto, tão logo coloquei os pés na barca, fui alcançada pela brisa que vinha da baía de Guanabara. Uma brisa no meio daquela ofegante correria. Uma brisa que me trouxe de volta a manhã de um dia em que eu não tinha nenhuma pressa. Uma brisa que fez meus pés pousarem no chão da barca, que lentificou meus passos, invadiu minhas narinas até fazer de mim também brisa. Uma brisa suave, bem aventurada e bem vinda nos dias de verão. Foi ela quem deteve o relógio que pulsava dentro do meu pulso. Quando desci da barca, a brisa era eu. Segui a passos lentos, com olhos calmos, ouvidos atentos e desatentos. Eu estava presente e tinha comigo a minha manhã, com vestidinho colorido, sapato baixo, sem nenhuma pressa. À minha frente era um mundo a ser cuidadosamente degustado.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Cenas da barca (I): a ilha perdida

É realmente uma experiência única navegar pela baía de Guanabara em tempos de chuva, como nos Cem Anos de Solidão: a chuva que não acaba nunca mais. Tudo branco no entorno, não se vê nem uma montanha, nem a ponte, nada. Navega-se no branco da neblina. Sinto-me em busca de uma ilha perdida, a ilha de São Sebastião! Será que a encontraremos? O futuro teima na incerteza e o que nos resta é essa brancura infinita! Quero de volta o sol, o calor, o verão, o canto das cigarras, as gaivotas que seguem a barca e tudo o mais que povoa nossos janeiros. Como será que interrompemos a brancura infinita? Onde está a ilha de São Sebastião?

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Altamir: o praticante de mágica

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Descrição [afetiva] da imagem: A cena tem duas partes. À esquerda e ao fundo, em preto e branco com tom sépia, algumas pessoas estão sentadas, são dois homens e uma mulher olhando para a direção em que estamos nós, que os observamos. Ainda nessa cena em preto e branco, destacado mais à frente e em tom mais vívido do que a sépia, há um homem todo galã, tipo bonitão, vestido com uma roupa meio safari, com chapéu e tudo. Nota-se que ele se debruça sobre um parapeito e lança o tronco adiante para beijar a mocinha, que está na segunda parte da cena, mais à direita. Os lábios dos dois quase se tocam, o galã coloca a mão forte no braço da mocinha, como se quisesse abraça-la. Dois detalhes importam: um, temos certeza de que se beijarão, a mocinha está entregue e ele é só sedução. Dois, a mocinha está em cores. É justo o que se passa no filme A rosa púrpura do Cairo, dirigido por Woody Allen. O personagem do filme visto pela mocinha sai da tela, sai do filme e vem beija-la na plateia. As cores distintas marcam  esse ponto, a história dentro da história. Isto é, a história que a mocinha assiste no cinema e a história dela, da mocinha. Quando vi esse filme esperei o tempo todo que os personagens saíssem todos da tela para se enredarem na nossa história, nossa, dos espectadores! Mal sabia que um dia eu encontraria Altamir, o praticante de mágica!

O nome dele era Altamir. Ligeiramente careca, barba por fazer, óculos de grau, Altamir se aproximou de nós numa praia na Bahia, onde estávamos, de férias. Sentados embaixo de uma barraca, na beira da praia, avistamos Altamir se aproximar trazendo nas mãos um veludo preto, enrolado no formato de um pote. Aos nossos olhos aquele veludo preto parecia conter uma poção mágica ou quem sabe alguma outra coisa muito valiosa. 
- Bom dia, posso mostrar meu trabalho para vocês? Foi o que nos perguntou Altamir, com um sorriso nos lábios.
Curiosa para ver o que ele trazia naquele pote mágico, logo disse que sim, nem esperei o aval do meu nego. Resolvi a questão de imediato. Altamir começou a tirar de dentro do pote mágico umas bijuterias.
- Esse aqui é o meu trabalho - ele ia nos mostrando pulseiras e colares, um a um. Logo emendou dizendo-nos que as bijuterias eram feitas por ele mesmo, com aço inoxidável e pedras.
Fiquei encantada com o que ele mostrava, especialmente com uma pulseira. Perguntei-lhe o preço da peça e Altamir cheio de sorrisos e simpatias me responde:
- Uma é 25, duas eu faço por 50! 
Soltamos uma gargalhada!
- É que o negócio tem que ser bom para vocês e para mim, né, não? Assim, fica bacana para todo mundo, não acha não?
Concordamos, claro, uma por 25 e duas por 50 era justíssimo! Seguimos na conversa. Altamir diz que a pulseira de que gostei era feita com a pedra do sol. Ah é? perguntei. Sim, pedra do sol, ele disse. Colocou a pulseira no sol, moveu-a para lá e para cá e eis a mágica: a pedra brilhava, reluzia como uma joia! Que lindo! exclamei, completamente encantada por Altamir, a esta altura já o considerando um mago da simpatia e da alegria.
Ele pergunta o nome do meu nego: Paulo, o nego responde e apresenta nosso filho, Gabriel.
Altamir solta um sorriso farto, olha para mim com cara de quem  descobriu um segredo e diz:
- Você deve se chamar Maria, pronto, completa a cena bíblica! Paulo, Maria e Gabriel, fechou!
- Não, passou perto, me chamo Marcia, eu respondo.
- Marcia, né? Ficou pertinho, pertinho, é quase Maria.
- Minha mãe se chamava Maria.
- Pronto, não disse? Taí, fechou tudo, fez sentido: é Marcia (meio Maria), Paulo e Gabriel. Fez sentido agora, fez não?
Altamir segue fazendo mil considerações sobre nossos nomes. Diz que anda estudando a história da bíblia. Aquilo tudo é muito interessante, não acham não?, ele nos pergunta sem esperar resposta. Faz umas observações sobre o nome Paulo e segue com as análises do nome Gabriel. 
- Tenho um filho de dois anos chamado Lucas Gabriel. Foi depois que ele nasceu que comecei a pesquisar a história da bíblia. Rapaz! Aquilo tem muita história! Gabriel é um anjo único, só tem ele, sabia não?
- Sim, sabia, eu disse. É o anjo que traz a boa nova, acho bonito isso, né?
- É, mas a questão é que há muitos anjos, mas Gabriel, com aquela missão, só tem ele. 
Altamir segue contando a história do povo judeu, das migrações e peregrinações. Na história que ele contava havia graça, humor, gargalhadas. Altamir não era, de modo nenhum, um pregador. Era alguém interessado em história, conforme ele mesmo nos disse, fez faculdade de humanas na estadual da Bahia.
- O povo de humanas gosta é disso, gosta é de contar história, né não? É massa isso aí!
Nosso parceiro mágico segue emendando um assunto no outro, sem perder de vista as pendengas biblícas. Nascido ali mesmo naquela região, Altamir falava com aquela musicalidade toda baiana, cheio de ginga, falando aquelas expressões em baianês: conhece a história dos judeus, conhece não? Vixi! Aquilo é uma pendenga!
Meu nego, eu e o garoto nos divertíamos com a interpretação baiana das pendengas vividas por Paulo, o personagem que habitava a narrativa de Altamir. Meu nego, apreciador e conhecedor das histórias contadas por Altamir, coloca carne na narrativa e comenta:
- Eu sou judeu.
- Vixi! Né, não? É? Judeu assim mesmo, judeu legítimo? perguntou Altamir completamente fascinado, como se estivesse diante de um personagem que subitamente saltasse da história para a vida real, como no filme de Woody Allen, a Rosa Púrpura do Cairo, quando o personagem sai da tela e cria mil e uma histórias com a mocinha que assiste o filme! Paulo havia saído direto daquela baiana narrativa e se materializava ali, morenaço, sentadão debaixo da barraca, completamente entregue à deriva das férias!
- Mas você é judeu como assim, negócio de ser judeu é uma complicação, né não? Tem o religioso, tem o que não é religioso... você é judeu é como assim?
- Meus pais são judeus, responde meu nego cheio de orgulho não tanto pela origem familiar mas, antes de tudo, por estar enredado naquela história que nos narrava Altamir. Meu nego ficou todo pomposo, afinal, era ele aquela figura que acabava de ganhar corpo, alma e vida nos espantos e interrogações do nosso mágico interlocutor!
- Vixi, mas que coisa... judeu, né? Assim, você pratica essa coisa toda? 
- Não, não pratico, meu nego disse cheio de objetividade.
Altamir soltou uma gargalhada e emendou:
- Menino, essa coisa não praticante é mesmo uma bossa, né não? Tem não praticante de tudo, sabia? Tem evangélico não praticante, tem católico não praticante, judeu não praticante e tem eu!!! Hippie não praticante, não fumo mais maconha, não! Tô só aqui é vendendo meu trabalho, fazendo um dinheirinho!
Hippie não praticante, jamais careta, o mágico Altamir nos vendeu a pulseira com a pedra do sol. Ainda pudemos ouvi-lo dizer aos companheiros da barraca ao lado:
- Bom dia, posso mostrar meu trabalho para vocês?