quinta-feira, 9 de junho de 2016

O voo da alma

Foi uma experiência de separação entre o corpo e a alma. Jamais imaginei que se pudesse viver essa separação de forma tão intensa.  Entre formulários, espera e medo, fui seguindo as rotinas numa entrega de meu corpo, despido de adereços. Porém, nele seguiam as tatuagens e suas histórias, as cicatrizes, as formas, tudo o que sempre foi meu.  O desnudamento não apagaria nenhuma dessas marcas. Passo a passo, etapa a etapa ia me inserindo naquele universo. Em meu pulso instalaram uma pulseira, ou antes, uma etiqueta onde se podia ler meu nome e mais alguns números de registro. Talvez esse novo adereço marcasse o meu pertencimento àquele universo. Mais do que meu nome, eram os números que davam as coordenadas sobre quem eu era, pelo menos ali dentro. A derradeira entrega àquele cenário veio com a inalação do gás que me desligaria de tudo e que permitiria o ato cirúrgico. Um apagamento do mundo. O retorno ao meu corpo veio de súbito. Abri os olhos, era eu ainda quem estava ali. Viva, buscando sentido nas luzes intensas, nos verdes, azuis e brancos dos uniformes e lençóis que me rodeavam. De olhos abertos, voltei a me pertencer. Segui mais outras tantas rotinas, espera, abre porta, o mensageiro, a maca com rodinhas, fecha portas, elevador, luzes fortes, brancura, ploc ploc ploc ploc, a maca deslizava em velocidade sobre o chão. Quando alcancei o quarto tive a impressão de que voltei a me pertencer em mais um grau. Ali estava meu nego, meus pertences e adereços, pedaços de mim. A fome já me acossava. Serviram-me um lanche mísero se considerado à luz do vazio que me tomava o estômago. Sem pestanejar, comi aquelas migalhas como se regalos fossem. Chegada a hora da alta, ofereceram-me uma cadeira de rodas que me levaria até a porta de saída, 10 andares abaixo de onde estávamos. Recusei, sentia-me forte, já estava de pé, munida dos pedaços de mim que haviam se dispersado poucas horas antes. Aquela etiqueta em meu pulso não me tirava do comando. Decididamente, podia caminhar de volta para  casa, foi o que pensei. Ledo engano. Ao cabo de alguns passos pelo corredor, um vento gelado teve início dentro de minha barriga. Partindo do centro, do umbigo, era um vento, um frio e, ao mesmo tempo, um suor. Tive tempo de falar que precisava de uma cadeira. De súbito meus joelhos se dobraram à minha revelia. Não permiti que me fizessem cair, estiquei-os de novo, eu estava - ainda - no comando do meu corpo. O vento frio se espalhava da barriga para todo o corpo. Era rápido, uma invasão. A cada lufada daquele ar gelado, era eu quem ia embora, era o comando que me escapava, eu ia para algum lugar, não sabia onde, mas eu ia.  Eu ia embora. A minha volta as coisas iam se apagando, se apagando, se apagando. De súbito entrei numa paisagem de serra, uma montanha, muito mato, tudo verde a minha volta. Era bonita aquela paisagem. Estranhamente eu deslizava nela, ainda que o frio me tomasse inteira. Eu não tinha mais corpo, estava leve, muito leve. Voava. Era eu e a montanha, uma largueza de mundo, um infinito que se abria em mim com aquele vento gelado. Um fio tênue, muito tênue, parecia conter aquele voo. Eram vozes, podia ouvi-las, sem nada discernir do que diziam. Um zum zum zum que me parecia vir de fora do meu voo, não pertencia à montanha por onde eu passeava. Um zum zum zum apressado. Eu percebia que havia pressa fora do meu voo. O fio era tênue porque a força daquela montanha era como uma atrator: me puxava em sua direção. Subitamente ouvi de novo um ploc ploc ploc ploc, eu deslizava, correndo, correndo. Alguns pedaços do mundo de fora da montanha iam voltando. A cadeira onde me sentaram corria pelo chão, um vento mais quente do que o frio do meu corpo alcançava meu rosto: era como um chamado.  Eu ia e vinha, entre a montanha e o ploc ploc ploc da cadeira no chão, entre o vento frio que me invadia e o vento quente que alcançava meu rosto. Um homem de roupa azul colocou meu braço em torno de seu pescoço. Não vi o seu rosto, não vi quem estava a minha volta e não sabia bem que voo era aquele. Seria mais uma volta pela montanha? Outro pedaço do mundo, eu estava deitada numa cama. Uma roupa branca, um estetoscópio, a mão de alguém. Eu pegava e largava os pedaços de mundo. Ia e vinha entre a montanha e aquele universo do hospital. Eram aquelas vozes que ligavam esses dois mundos. O zum zum zum da ligação entre meu corpo e minha alma. Quanto mais perdia a montanha, mais eu voltava para o meu corpo. Onde era a partida? Onde era a chegada? Minha alma e meu corpo iam se encontrando na medida em que o zum zum zum se reunia em sons com sentido, eram palavras. As imagens em pedaços ganhavam forma, um médico, um enfermeiro, meu nego. Cheguei. Comigo, as palavras de Leminski: o tempo, entre o sopro e o apagar da vela.

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