sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Altamir: o praticante de mágica

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Descrição [afetiva] da imagem: A cena tem duas partes. À esquerda e ao fundo, em preto e branco com tom sépia, algumas pessoas estão sentadas, são dois homens e uma mulher olhando para a direção em que estamos nós, que os observamos. Ainda nessa cena em preto e branco, destacado mais à frente e em tom mais vívido do que a sépia, há um homem todo galã, tipo bonitão, vestido com uma roupa meio safari, com chapéu e tudo. Nota-se que ele se debruça sobre um parapeito e lança o tronco adiante para beijar a mocinha, que está na segunda parte da cena, mais à direita. Os lábios dos dois quase se tocam, o galã coloca a mão forte no braço da mocinha, como se quisesse abraça-la. Dois detalhes importam: um, temos certeza de que se beijarão, a mocinha está entregue e ele é só sedução. Dois, a mocinha está em cores. É justo o que se passa no filme A rosa púrpura do Cairo, dirigido por Woody Allen. O personagem do filme visto pela mocinha sai da tela, sai do filme e vem beija-la na plateia. As cores distintas marcam  esse ponto, a história dentro da história. Isto é, a história que a mocinha assiste no cinema e a história dela, da mocinha. Quando vi esse filme esperei o tempo todo que os personagens saíssem todos da tela para se enredarem na nossa história, nossa, dos espectadores! Mal sabia que um dia eu encontraria Altamir, o praticante de mágica!

O nome dele era Altamir. Ligeiramente careca, barba por fazer, óculos de grau, Altamir se aproximou de nós numa praia na Bahia, onde estávamos, de férias. Sentados embaixo de uma barraca, na beira da praia, avistamos Altamir se aproximar trazendo nas mãos um veludo preto, enrolado no formato de um pote. Aos nossos olhos aquele veludo preto parecia conter uma poção mágica ou quem sabe alguma outra coisa muito valiosa. 
- Bom dia, posso mostrar meu trabalho para vocês? Foi o que nos perguntou Altamir, com um sorriso nos lábios.
Curiosa para ver o que ele trazia naquele pote mágico, logo disse que sim, nem esperei o aval do meu nego. Resolvi a questão de imediato. Altamir começou a tirar de dentro do pote mágico umas bijuterias.
- Esse aqui é o meu trabalho - ele ia nos mostrando pulseiras e colares, um a um. Logo emendou dizendo-nos que as bijuterias eram feitas por ele mesmo, com aço inoxidável e pedras.
Fiquei encantada com o que ele mostrava, especialmente com uma pulseira. Perguntei-lhe o preço da peça e Altamir cheio de sorrisos e simpatias me responde:
- Uma é 25, duas eu faço por 50! 
Soltamos uma gargalhada!
- É que o negócio tem que ser bom para vocês e para mim, né, não? Assim, fica bacana para todo mundo, não acha não?
Concordamos, claro, uma por 25 e duas por 50 era justíssimo! Seguimos na conversa. Altamir diz que a pulseira de que gostei era feita com a pedra do sol. Ah é? perguntei. Sim, pedra do sol, ele disse. Colocou a pulseira no sol, moveu-a para lá e para cá e eis a mágica: a pedra brilhava, reluzia como uma joia! Que lindo! exclamei, completamente encantada por Altamir, a esta altura já o considerando um mago da simpatia e da alegria.
Ele pergunta o nome do meu nego: Paulo, o nego responde e apresenta nosso filho, Gabriel.
Altamir solta um sorriso farto, olha para mim com cara de quem  descobriu um segredo e diz:
- Você deve se chamar Maria, pronto, completa a cena bíblica! Paulo, Maria e Gabriel, fechou!
- Não, passou perto, me chamo Marcia, eu respondo.
- Marcia, né? Ficou pertinho, pertinho, é quase Maria.
- Minha mãe se chamava Maria.
- Pronto, não disse? Taí, fechou tudo, fez sentido: é Marcia (meio Maria), Paulo e Gabriel. Fez sentido agora, fez não?
Altamir segue fazendo mil considerações sobre nossos nomes. Diz que anda estudando a história da bíblia. Aquilo tudo é muito interessante, não acham não?, ele nos pergunta sem esperar resposta. Faz umas observações sobre o nome Paulo e segue com as análises do nome Gabriel. 
- Tenho um filho de dois anos chamado Lucas Gabriel. Foi depois que ele nasceu que comecei a pesquisar a história da bíblia. Rapaz! Aquilo tem muita história! Gabriel é um anjo único, só tem ele, sabia não?
- Sim, sabia, eu disse. É o anjo que traz a boa nova, acho bonito isso, né?
- É, mas a questão é que há muitos anjos, mas Gabriel, com aquela missão, só tem ele. 
Altamir segue contando a história do povo judeu, das migrações e peregrinações. Na história que ele contava havia graça, humor, gargalhadas. Altamir não era, de modo nenhum, um pregador. Era alguém interessado em história, conforme ele mesmo nos disse, fez faculdade de humanas na estadual da Bahia.
- O povo de humanas gosta é disso, gosta é de contar história, né não? É massa isso aí!
Nosso parceiro mágico segue emendando um assunto no outro, sem perder de vista as pendengas biblícas. Nascido ali mesmo naquela região, Altamir falava com aquela musicalidade toda baiana, cheio de ginga, falando aquelas expressões em baianês: conhece a história dos judeus, conhece não? Vixi! Aquilo é uma pendenga!
Meu nego, eu e o garoto nos divertíamos com a interpretação baiana das pendengas vividas por Paulo, o personagem que habitava a narrativa de Altamir. Meu nego, apreciador e conhecedor das histórias contadas por Altamir, coloca carne na narrativa e comenta:
- Eu sou judeu.
- Vixi! Né, não? É? Judeu assim mesmo, judeu legítimo? perguntou Altamir completamente fascinado, como se estivesse diante de um personagem que subitamente saltasse da história para a vida real, como no filme de Woody Allen, a Rosa Púrpura do Cairo, quando o personagem sai da tela e cria mil e uma histórias com a mocinha que assiste o filme! Paulo havia saído direto daquela baiana narrativa e se materializava ali, morenaço, sentadão debaixo da barraca, completamente entregue à deriva das férias!
- Mas você é judeu como assim, negócio de ser judeu é uma complicação, né não? Tem o religioso, tem o que não é religioso... você é judeu é como assim?
- Meus pais são judeus, responde meu nego cheio de orgulho não tanto pela origem familiar mas, antes de tudo, por estar enredado naquela história que nos narrava Altamir. Meu nego ficou todo pomposo, afinal, era ele aquela figura que acabava de ganhar corpo, alma e vida nos espantos e interrogações do nosso mágico interlocutor!
- Vixi, mas que coisa... judeu, né? Assim, você pratica essa coisa toda? 
- Não, não pratico, meu nego disse cheio de objetividade.
Altamir soltou uma gargalhada e emendou:
- Menino, essa coisa não praticante é mesmo uma bossa, né não? Tem não praticante de tudo, sabia? Tem evangélico não praticante, tem católico não praticante, judeu não praticante e tem eu!!! Hippie não praticante, não fumo mais maconha, não! Tô só aqui é vendendo meu trabalho, fazendo um dinheirinho!
Hippie não praticante, jamais careta, o mágico Altamir nos vendeu a pulseira com a pedra do sol. Ainda pudemos ouvi-lo dizer aos companheiros da barraca ao lado:
- Bom dia, posso mostrar meu trabalho para vocês?

3 comentários:

  1. Coisa mais linda, professora. Vou ler as outras. Grande magico esse moco da Bahia.
    Marcelo.

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    1. Oba! Que bom que você vai lê-las! Uma figuraça na Bahia, nosso praticante de mágica! Inesquecível! beijos,

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