sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Cenas da barca (II): o pulso e a brisa

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Descrição da imagem: É um dia de céu azul. À direita, a barca navega nas águas da baía de Guanabara. A cena mostra apenas uma parte da barca, como se ela chegasse na imagem, sem ter concluído a sua passagem. Ao fundo, uma parte da Ponte Rio-Niterói, onde podem ser vistos muitos e muitos carros. Parece que há congestionamento na Ponte. Na barca a placa que a nomeia indica o que seu passageiro vivencia: Boa Viagem. Será?

Tenho colegas de trabalho que estudam as relações entre subjetividade e espaços urbanos. O tema é instigante já que nossa vida na urbe é atravessada por idiossincrasias, como a que vivi no dia de hoje. Fui ao Rio de Janeiro de barca, como tenho feito rotineiramente a fim de fugir dos congestionamentos intermináveis que imobilizam carros, ônibus e qualquer outro veículo com quatro rodas. O céu nublado minimizava o calor do verão, havia uma brisa no ar e eu seguia sem nenhuma pressa para a cidade vizinha. De vestidinho colorido, sapato baixo, meus cabelos ainda guardavam o cheiro do shampoo que usara no banho recém tomado. Meu corpo tinha o frescor de uma manhã leve. O que me conduzia ao Rio de Janeiro não era nada que necessitasse das malvadas exigências do relógio que adornava o meu pulso. Era um encontro que podia esperar, não tinha urgência e eu havia saído de casa cedíssimo para aproveitar a manhã. Porém, o que eu não sabia é que havia um relógio maluco a pulsar dentro do meu pulso. Isso mesmo, havia um relógio a pulsar dentro do meu pulso. Disso só me dei conta quando, ao me aproximar da estação das barcas, ouvi o som que vinha das roletas. Era um aviso sonoro, uma sirene, que indicava o iminente fechamento das roletas. Junto com o aviso sonoro, luzes vermelhas, em formato de X, piscavam em cima de cada roleta. Quanto tempo restaria para as roletas fecharem?  Foi a pergunta que me fiz com os olhos esbugalhados refletindo as luzes vermelhas que piscavam nas roletas. A sirene invadia meus ouvidos e  por esta porta de entrada, me tomava o corpo. Era preciso correr. Meus pés saíram em disparada, me reuni às pessoas apressadíssimas que, ao meu lado, também corriam. Era movida pelo relógio que pulsava dentro do meu pulso, era ele e não o outro, que me fazia correr. Corri sôfrega, era preciso alcançar aquela roleta como se não houvesse mais nenhuma barca no mundo, como se meu compromisso na outra cidade fosse questão de vida ou de morte. Corri impulsionada pelos meus pés, pelas minhas coxas e pelo relógio a pulsar dentro do meu pulso. Alcancei a roleta, encostei o cartão na máquina e quando vi que o valor da passagem fora debitado, avancei sobre as barras de ferro e joguei meu corpo para dentro da estação. Foi como seu eu tivesse ganho uma corrida de obstáculos! Alcancei a barca! Ou melhor, alcancei aquela barca, a última barca do mundo! Segui reunida com a massa de gente a minha volta e notei que a prova continuava. A corrida agora era para conseguir um assento na barca. Passos apressados a minha volta, corpos que se lançavam nas fileiras de cadeiras em busca do assento que aliviaria aquela sofreguidão por 20 minutos. Findo esse tempo, possivelmente o rally teria continuidade. Seria preciso descer da barca correndo para alcançar mais alguma coisa que eu não sabia ainda o que era. No entanto, tão logo coloquei os pés na barca, fui alcançada pela brisa que vinha da baía de Guanabara. Uma brisa no meio daquela ofegante correria. Uma brisa que me trouxe de volta a manhã de um dia em que eu não tinha nenhuma pressa. Uma brisa que fez meus pés pousarem no chão da barca, que lentificou meus passos, invadiu minhas narinas até fazer de mim também brisa. Uma brisa suave, bem aventurada e bem vinda nos dias de verão. Foi ela quem deteve o relógio que pulsava dentro do meu pulso. Quando desci da barca, a brisa era eu. Segui a passos lentos, com olhos calmos, ouvidos atentos e desatentos. Eu estava presente e tinha comigo a minha manhã, com vestidinho colorido, sapato baixo, sem nenhuma pressa. À minha frente era um mundo a ser cuidadosamente degustado.

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