quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O vozeirão de jaleco: cada ano é um ano

[Imagem]
Descrição da imagem: A figura é de uma charge. Um homem careca, de óculos e jaleco faz um exame de imagem numa boneca matrioska, que está deitada. O homem segura uma parte do equipamento do exame sobre a barriga da boneca, com a outra mão toca o teclado do equipamento e olha para a tela. Nesta última, o que se vê não é imagem do corpo da mulher, mas a reprodução da cena que vemos: o homem de jaleco olhando a tela, a boneca deitada.  E na tela que está na tela, a cena se repete. Assim, a cena vai se repetindo ao infinito, lembrando George Perec, em A Coleção Particular, leitura que recomendo. A própria imagem é como a matrioska, a boneca russa: uma dentro da outra, sem fim, se repetindo.


Já rendi homenagens à Fernanda Torres pela escrita do texto "Calores" (ver aqui). Pois hoje reitero as reverências. Fui fazer exames de imagem, todos de rotina para uma mulher como eu, já quase nos 50 anos. A chegada ao laboratório onde faria os exames foi marcada pela descontinuidade: do calor tropical das ruas ao inverno glacial daquele local branco, ladrilhado, cheio de gente e com vários balcões e recepcionistas. Num balcão recebo a ordem: apresente a carteira do plano de saúde; em outro, assine um papel, suba uma escada; mais uma sala, outro balcão, mais uma ordem. Fui seguindo o fluxo, arrepiada com a temperatura glacial emitida pelos gigantescos aparelhos de ar condicionado que estavam em todas as salas. Finalmente, depois de um périplo de balcões e recepcionistas, cheguei à sala de exame e foi neste local que encontrei o vozeirão de jaleco. Deitada numa maca, pronta para o exame, ouço um sonoro, grave e alto: BOM DIA, SRA. Levei um susto com aquela voz grave. Era um rapaz, talvez entre os 35 / 40 anos, que entrava na sala para fazer o exame. Um pouco careca, de óculos, vestindo o jaleco branco, o rapaz tinha um vozeirão que combinava pouco com a sua figura. O exame se inicia com o lançamento de um gel sobre a  minha pele, para que o equipamento de imagem funcione melhor. O gel estava mais ou menos à temperatura de - 20 graus, o que acrescido do gélido da sala, gerava uma temperatura de - 40 graus! Cheguei a comentar com o vozeirão de jaleco que o ar era muito gelado e ele me disse que os equipamentos precisam dessa temperatura. Logo imaginei que o equipamento também precisa da temperatura do gel. Tudo bem, há que se fazer algumas concessões aos equipamentos. Segue o exame, o vozeirão quase não fala, olha para a tela do computador, toma notas, olha para tela, arrasta aquele aparelho no meu corpo e assim seguimos. Até que o vozeirão conclui algo: A SRA. É UMA MULHER HORMONALMENTE ATIVA. Bingo! Foi o que pensei, já supondo que isso devia ser comemorado. Nem sabia que daquele exame poderia sair a minha aprovação hormonal. Mas o vozeirão não encerrou neste ponto as suas conclusões, seguiu num brado retumbante:  É, SRA., MAS DAQUI PRA FRENTE, CADA ANO É UM ANO, SÓ PIORA! TEM QUE ACOMPANHAR! Cacildes, estarrecida, emudeci. Que destino me foi traçado, ali na lata, na cara, o vozeirão de jaleco me fez saber que daqui para frente, só há piora. O que? Eu? Meus hormônios? A vida? O Brasil? Um pouco de tudo isso? Não consegui dizer palavra. Terminado o exame, fiz o percurso reverso, desci escadas, revi de trás para frente os balcões, as recepcionistas, a montoeira de gente e finalmente alcancei a rua. No lugar da descontinuidade que marcara minha chegada àquele mundo de ladrilho, experimentei um delicioso reencontro com o  calorão da rua, que me trouxe de volta ao mundo a que pertenço, à vida da cidade, à minha vida. Um alívio. Mas o destino que me fora traçado pelo vozeirão de jaleco reverberava em minha cabeça. Até que finalmente decidi que não podia deixar que o vozeirão, sozinho, decidisse meu futuro e meu presente. Nada disso, dos meus tempos cuido eu. No final das contas, cada ano é um ano desde que nascemos! Cada ano é um ano, disso não resulta nenhum grande dramalhão. Cada dia é um dia, cada mês é um mês. Pois bem, disse em pensamento ao vozeirão de jaleco: se cada ano é um ano o que nos resta é vive-los! Bem vive-los, ora bolas! Desse modo, lanço ao mundo inteiro uma outra possibilidade de conclusão frente ao dito do vozeirão:  se cada ano é um ano, CARPE DIEM! Outra possibilidade, outro mundo.

4 comentários:

  1. tô curtindo os escritos do blog! Carpe diem!
    A propósito, sensacional a ideia do quadro que abre a narrativa... Muito interessante! Não conhecia esse tal de George Perec, vou procurar mais coisas dele...

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  2. Que bom, Cris! To curtindo escreve-lo! O George Perec é muito bom de ler. Esse livro, A coleção particular, é sobre uma coleção de quadros em que cada um repete a coleção ao infinito. E tem outro que também gostei demais, sobre Memória, chama-se W Memória. Ah, um passarinho me contou do doutorado na UFES! Uhuhu! Parabéns!

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  3. hauhauhauh Muito bom, Marcia! O dramalhão do senhor jaleco, mto bom!O rapaz era sobrinho do Cid Moreira c o Gil Gomes?

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    1. Boa, Ana, vai ver que o vozeirão era parente do Cid Moreira! Beijos, beijos, :)

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