domingo, 22 de novembro de 2015

Assim como são as pessoas são as criaturas

Na minha família por parte de mãe todos falavam - e falam - por meio de provérbios.  Era surpreendente, a cada situação, um provérbio. Mais surpreendente ainda o fato de que até os últimos dias em que pude conviver com minha mãe, foram 32 bons e felizes anos de convivência, ela era capaz de me surpreender com um ditado novo, que eu ainda não conhecia. Minha avó, mãe de minha mãe, podia recitar versinhos, tudo rimando com tudo, para dizer as coisas mais banais, para fazer uma consideração sobre o sabor de uma comida, sobre um cheiro forte, sobre o apetite, enfim, para as mais corriqueiras das situações de vida havia um ditado, um verso, uma rima. Cresci ouvindo essas frases. Algumas nunca entendi o sentido. Outras fui entendendo ao longo dos anos. Outras ainda não entendi o sentido, mas pesquei a situação em que deveriam ser empregadas. Junto com essa banda da família havia o meu pai que, não partilhando do mesmo universo que o grupo materno, muitas vezes usava sarcasticamente os ditados, de sorte que me ocorreu de lembrar apenas da versão dele para o provérbio! Por exemplo, havia um provérbio - que sumiu da minha memória - que minha mãe usava para falar alguma coisa sobre burrice. Pois que meu pai eternizou o non sense (talvez todos eles sejam puro non sense, me vem isso agora à mente!): burro é o burro que o burro dará! Vez ou outra, no meio de um assunto, meu pai mandava essa aí: burro é o burro que o burro dará! Emitia essa sentença como quem faz uma constatação filosófica. Pois é, minha gente, burro é o burro que o burro dará, ele dizia assim, sem a menor cerimônia. Os ingênuos do entorno calavam, sabe-se lá, vai ver isso era uma grande conclusão sobre a humanidade, ninguém se arriscava a contestar. Mas minha mãe, sabedora do sarcasmo, ralhava com ele,  corrigia o ditado, mas não adiantou nada, ficou essa versão. De modo que hoje recomendo esse ditado, com uma dica: deve ser pronunciado em momentos de fechamento de uma conversa ou para produzir uma conclusão cabal e definitiva sobre tema da mais alta relevância. Há outro, eternizado também por meu pai, no mesmo estilo: assim como são as pessoas são as criaturas. Pegaram? Profundo, não é? Assim como são as pessoas são as criaturas. Esse aí deve ser dito em outra situação, justo quando acaba o assunto, quando se está num grupo e rola aquele silêncio, ninguém diz mais nada. Então, este é o exato momento de dizer pausadamente: é, assim como são as pessoas são as criaturas. Dito isso, das duas uma: ou a conversa acende de novo ou acaba de vez. Tenho a impressão de que meu pai sabia dizer a frase de modo a fazer uma coisa ou outra, mas isso não aprendi. Mas se meu pai era sarcástico e criou uma versão própria dos ditados, minha mãe levava a coisa a sério. Para conversar com ela era preciso entrar naquele mundo de frases e provérbios que ela tinha - meu pai era o único que sabia criar a partir dos ditados, sob os protestos dela, mas criava. Então, se reclamávamos da comida, ela logo mandava: quem tem fome cardos come. Se um lugar tinha um cheiro forte, ela sacava da manga: prefiro a morte ao cheiro forte. Quando ela ia até a vizinha pedir alguma coisa e não encontrava, ela falava: fui a vizinha, envergonhei-me, voltei para a casa, remediei-me. Se um boato corresse forte, lá vinha: em tempo de guerra é boato que nem terra. Ah, havia também as muitas louvações a própria casa: minha casa, minha casinha, merda para o rei, mais para a rainha. Meio desbocada essa, mas ela usava mesmo em presença de crianças inocentes. Um dia bom mede-se em casa: esta deve ser dita naqueles dias que a gente mais não faz do que se jogar de um sofá a outro. E, claro, todos nós sabemos que boa romaria faz quem em sua casa fica em paz. Já para dizer que um filho se parece com o pai, para o bem ou para o mal, não importa: quem sai aos seus não degenera. Se numa briga, você decide calar-se, diga: me fechei em copas. Se na mesma briga se arrependeu, mande: cheguei o rabo à seringa. É possível conjugar os dois, vejam como fica a narrativa: Eu cá cheguei o rabo à seringa e me fechei em copas. Ela podia contar uma situação inteirinha apenas conjugando esses ditados. Perceberam como a coisa vai se complexificando, se sofisticando? Se num dia você dormiu mais do que deveria: dormi feito uma cebola.  Para  dizer que alguém era arrogante, metido à besta, havia uma variação, ambas chulas, pronunciadas por minha mãe na maior cara dura, onde fosse. A primeira versão: come feijão e arrota presunto. A segunda: não tem merda no cú para cagar. Eu ruborizo só de dizer essas frases, mas minha mãe não ruborizava não, dizia era na lata. Eu hein, sujeito bobo, não tem merda no cú para cagar! Era assim e pronto. Vez ou outra, se meu irmão ou eu estivéssemos tristes, chateados com alguma coisa, podia vir: não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Ou uma versão mais filosófica, convocando o tempo: nada como um dia após o outro com uma noite no meio. Nada, nada como esse dia aí, com uma noite no meio. Eu, quando ouvia isso, já ficava naquela segurança que tudo ia dar certo, o que quer que fosse, ia dar certo, tinha a noite no meio. Meu pai tinha a versão dele para este momento também: toda semana tem uma segunda-feira, é o dia para se começar alguma coisa. Toda semana, semana após semana, tem uma segunda-feira. Comeu demais? Já já vem a segunda-feira e você começa uma dieta. Não fala um idioma além do português, quer começar um curso de línguas? Um projeto novo? Já já vem a segunda-feira. E assim por diante, é multi-uso esse ditado. Bom, tudo isso, como se pode imaginar, é interminável porque na família também circulavam, é claro, os ditados mais conhecidos, do tipo água mole em pedra dura..., olho por olho..., e outros no estilo. Agora, se o leitor chegou até esse momento da leitura e achou tudo isso uma pura maluquice, puro absurdo e non sense eu digo em alto e bom som, com meu pai: Ihhhhhh!!!!! Jogaram as carabinas nágua!!!, para indicar que agora sim, o sujeito teve um tremendo insight e entendeu alguma coisa! Entenderam? Ihhhh!!! Jogaram as carabinas nágua!



4 comentários:

  1. Gosto também daquele que você diz de vez em quando: urubu quando está com azar o debaixo caga no de cima! ��

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    1. Ah querida, esse é ótimo!! Tinha esquecido dele! É que os ditados são lembrados nas situações, há uma pertinência entre uma coisa e outra! Mas ando tomando nota desses ditados, vou tascar esse aí na lista! Muchas gracias! O do urubu tem uma precisão definitiva, não há azar maior do que este, minha nossa, o debaixo caga no de cima, cacildes, baita azar! Minha mãe falava muito isso!!

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  2. Que texto maravilhoso. Seus pais deviam ser as melhores companhias

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