quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Da série bichos em casa: barítono e sopranos em dias de chuva

Passamos dias de chuva, o que foi um alívio e uma promessa: quem sabe teremos um verão mais úmido e com rios mais cheios. A chuva nos encheu de esperança, a grama da casa ficou verde de alegria. Tico, o gato, viveu a chuva como dias glaciais, enroscou-se no sofá e de lá só se levantava para as necessidades mais básicas. Nada além disso e alguns minutos por dia de alongamentos profundos. O resto era uma preguiça descomunal. Assim seguiríamos por 5 dias consecutivos, orquestrados pela batuta do Tico e da grama não fosse a irrupção de um novo personagem, forte, incisivo, grandiloquente: ele, o barítono da voz rouquíssima, grave, alta. Estávamos todos na sala, nós três, mais o Tico jogado fora no sofá acumulando energia para grandes caçadas que não chegaram. Logo, estava com energia suficiente para produzir uma bomba atômica, tamanho o tempo que permanecia dedicado a extenuante tarefa de não fazer nada e acumular energia. Conversávamos, falávamos da chuva, planejávamos ver um filme, quem sabe andar da sala para a cozinha em busca de um chá quente. No meio da nossa pachorra, eis que ouvimos alto, grave, retumbante: AHHHHH!!! Levamos um susto danado! Calamos. Tico conseguiu mover as orelhas na direção daquele barítono, aquele grave rascante, forte. Vinha lá de fora. Corremos à janela em busca do ser que poderia ter causado aquele som. Ficamos ali na janela a elucubrar que ser poderia ter uma voz tão forte. Por alguns segundos só recebemos de volta o silêncio. Até que de súbito lá vem: AHHHHH!!!! Novo sobressalto. O que é isso, meudeus??? Vem lá de fora mãe, vê se você consegue enxergar alguma coisa! me disse meu filho, sinalizando-me o que eu já sabia apenas para ficar ali na parceria, no tamu junto para o que der e vier. Pelo som daquela coisa, possivelmente viria um dinossauro. O intelectual, no devir etólogo, ligeirinho classificou: é um sapo, Marcia! Um sapo! E AHHHHH!!!!! Outro susto. Eu disse, um sapo, meu nego? O sapo que ficava ali atrás, na direção da mesa da sala era mais, digamos, modesto, fazia um ahhh mais baixo, era um parceiro, até o chamamos de Rodolfo. Pois é, disse o nego. Vai ver o Rodolfo cresceu e veio para a frente da casa. Eu logo disse ao etólogo: nego, se este sapo aí fora for o Rodolfo, temos que admitir que ele cresceu de maneira assustadora, tornou-se um gigante. E AHHHH!!! Ui, gente, é ele! Digo, um gigante, pelo som que ouvimos só podemos concluir que esse bicho é mais alto do que eu, na certa, tem mais de um metro e noventa centímetros, muito mais! E AHHHHH!!!! A cada som do nosso barítono dançávamos nós três, digo, nós quatro, porque havia as orelhas do Tico! Entreolhávamo-nos assustados! Ficamos na janela, olhos atentos lá fora. Víamos a chuva, pequenas poças de água pela rua, a luz amarela do poste, a grama feliz e mais nada. Nada, nada. É certo que nunca vimos Rodolfo, assim face to face, nunca. Mas sempre soubemos que ele era um pequeno sapo, era um ahhhh! com minúscula. Ao modo dele havia até interação conosco, porque eu pelo menos sempre fiz ahhhh! para ele, sempre, não deixava aquele sapo no vácuo não que não sou disso. Eu interagia, ele fazia ahhh! e eu respondia dando notícias: ahhhh! Aquele lá fora era outro sapo, pensei. Rodolfo sumiu, devia ser coisa dele, não foi por falta de interação, de amizade conosco. Mas com o barítono não dava para ter diálogo, teríamos que gritar de corneta, megafone ou coisa que o valha. Para manter aquele papo reto, direto, manda lá que eu pego cá? Só no megafone! Me senti um daqueles personagens do Jurassic Park dentro de uma latinha qualquer enquanto os dinossauros corriam soltos lá fora! E AHHHHHH!!!!!! Ui, socorro!!!! É ele!!! Não vimos nada, ficamos ali um tempo à procura do barítono. Não o avistamos, apenas o ouvimos. Ele cantou em todas as noites de chuva. E em tempos de barítono na chuva, não houve uma só perereca soprano a cantarolar noite adentro. Antes do barítono, noites de chuva eram noites de pererecas sopranos, agudas, alegres, vibrantes, sempre em bando, cantavam. Nunca fizeram um coral, não, cantavam juntas, mas cada uma a sua moda, todas sopranos, agudíssimas, numa melodia que se inventava era nos nossos ouvidos. Fiquei com saudade das pererecas, mas acabei por curtir o barítono. Talvez com ele a interação fosse assim mesmo, vai saber. Ele, alto, grave, retumbante. Nós, silenciosos, com breves sobressaltos e um sorriso de canto de boca, que com o passar dos dias fomos aprendendo a oferecer ao barítono. Choveu. AHHHHH!!!!!!!!!!!

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