11 de outubro de 2015.
Da série bichos em casa escrita por outros autores, com delicadeza, graça e sensibilidade, “Ela e Eu”, por Zélia Duncan. Publicado originalmente no Jornal O Globo, em 02 de outubro de 2015.
Sempre fui cachorreira, mas Doralice, uma gata
siamesa, me conquistou.
Eu sempre fui cachorreira, com muito orgulho. Com
tudo que esse discurso implica. Sempre amei nos cães, o que os donos
de gatos consideram menor. A subserviência, o rabo abanando, o medo
de nos desagradar, perdoando nossos rompantes, nossas tristezas,
nossa aparência. Amo chegar em casa e ser recebida explicitamente,
ou saber que eles estão ali, aos meus pés, sempre querendo
participar.
Foi em meio a todo esse ambiente e numa casa onde
havia dois cachorros, que Doralice chegou. Bradei, profetizei, mas
ela chegou. Mais que isso, EU fui buscar na casa de duas amigas
queridas que precisavam desovar aquela ninhada. Siamesa. Sim, linda,
devo admitir. Um gato bebê não pesa, levita! E tem aquela
penugenzinha por cima do futuro pelo. Olhos azuis, assim era ela.
Tentei ser durona, mas torcia pra ficar em casa sozinha, pra podermos
brincar em paz. Mas também, quem pode resistir a um bebezinho…
Lembro ainda em Brasília, quando meu irmão levou um filhote de
coruja pra casa e guardou em sua gaveta de cuecas. Descobrimos com um
grito de mamãe, que deu de cara com uma coisa “zoiuda” e
assustada. Corremos pra ver. Penugem estranha, a caminho de ser asa,
desengonçada, esbugalhada, mas, mas… QUE GRACINHA! E não foi sem
chororô que libertamos aquele amor de criatura. Imaginem um pequeno
siamês, como evitar? Os cachorros curiosos entenderam que ela ia
ficar e que, principalmente, estava protegida pela chefe da matilha.
Foi a duras penas que entendi que aquela alegre canção, “nós
gatos já nascemos pobres, porém, já nascemos livres”, não
passava de pura verdade. Ela um dia sumiu. E por morarmos numa casa,
isso foi bem fácil. Fiquei indignada. Como? Que traição! Meus cães
nunca me abandonaram assim. Foram 20 dias. Um belo dia, do nada, lá
estava ela no muro. Bradei de novo, jurei que não me apegaria, que
nem olhar pra ela eu queria mais. Botei uma coleirinha com seu nome e
o telefone da casa. Sumiu de novo… Dias depois, toca o telefone:
Por favor, Dona Doralice está? É que a gata dela está aqui na
minha casa. Lá fui eu, pegar Dona Doralice na casa alheia.
“Eu prefiro viver tão sozinha
Ao som do lamento do meu violão…”
E foi ficando. Vez em quando dormia fora, mesmo
depois de ser castrada e já ter tido uma filha, que acabou ficando
também.
Certa feita, passa um vizinho lá da frente e a
cumprimenta, bom dia, princesa! Eu sorri, ela se chama Doralice! E
ele: Pra você, né? Lá em casa é Princesa! Vida dupla, esfregada
na minha cara!
Mas o fato é que ela era mais minha do que do
mundo todo, que também a tinha. Viu minha vida virar do avesso
algumas vezes. Me viu muito feliz também. Teve ódio de mim, quando
outro cachorro chegou. Levou um presente enquanto eu lia em cima da
cama. Ela subiu com um miado esquisito, eu não conhecia nada de
gatos. Parou pertinho de mim, abaixou a cabeça e abriu a boca. Uma
barata meio tonta começou a rodar em cima do lençol. Pulei, gritei,
só não cantei. Me disseram depois, que gatos trazem presentes e
comida. Mas não me chamo GH nem nada… não tô com fome, Doralice,
e se estivesse, iria atrás de minha própria caça, combinado?
A barriga mais enxuta e macia da casa. Gostava de
deitar de barriga pra cima e que um escravo a acarinhasse. Sim, gatos
mandam até nos que se acham mais mandões, como eu. E os siameses
tem um miado 360 graus. M I A UUU. Reclamam, exigem. E cá pra nós,
são adoráveis. Depois dela, convivi com alguns gatos e passei a
olhá-los de outro modo, embora seja cachorreira. Doralice é a gata
mais carinhosa e chameguenta da história do meu país. Meu gatorro…
Quando mudei de casa, ela simplesmente se negou a
acompanhar o cortejo. Sua filha, Ritinha, entendeu logo, os
cachorros, nem se fala, mas ela não se conformou. Como era no mesmo
bairro, eu trazia, ela voltava, eu trazia, ela voltava. Desisti,
temporariamente, pra ver o que acontecia. Ela não voltou. Eu pedia
pra alguém ir lá ver se ela estava sendo cuidada pelo tal vizinho.
Um dia fui até a antiga casa, entrei na sala vazia e presenciei uma
das cenas mais devastadoras, lá estava ela teimosa, solitária. Me
viu e M I A UUU. Chega. Levei, botei numa coleira, por uma semana,
presa num quarto. Revolta, olhares ameaçadores e… entendeu, ficou.
Sacou que a vida tava boa de novo. Passou a me seguir o dia inteiro,
a ponto de eu ter que fechar a porta do quarto, para ter privacidade.
Ela se escondia dentro do armário, resolvia sair de madrugada e
quase me matava de susto.
Doralice partiu nessa primavera machona, com bafos
de verão, desse ano sombrio que tem sido 2015. Dezesseis anos
depois, no meu colo. Choro. Logo eu, que sou cachorreira.
“E agora, amor, Doralice, meu bem
Como é que nós vamos fazer?”
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