quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Da série bichos em casa escrita por outros autores. Ela e eu, por Zélia Duncan


11 de outubro de 2015.

Da série bichos em casa escrita por outros autores, com delicadeza, graça e sensibilidade, “Ela e Eu”, por Zélia Duncan. Publicado originalmente no Jornal O Globo, em 02 de outubro de 2015.

Sempre fui cachorreira, mas Doralice, uma gata siamesa, me conquistou.
Eu sempre fui cachorreira, com muito orgulho. Com tudo que esse discurso implica. Sempre amei nos cães, o que os donos de gatos consideram menor. A subserviência, o rabo abanando, o medo de nos desagradar, perdoando nossos rompantes, nossas tristezas, nossa aparência. Amo chegar em casa e ser recebida explicitamente, ou saber que eles estão ali, aos meus pés, sempre querendo participar.
Foi em meio a todo esse ambiente e numa casa onde havia dois cachorros, que Doralice chegou. Bradei, profetizei, mas ela chegou. Mais que isso, EU fui buscar na casa de duas amigas queridas que precisavam desovar aquela ninhada. Siamesa. Sim, linda, devo admitir. Um gato bebê não pesa, levita! E tem aquela penugenzinha por cima do futuro pelo. Olhos azuis, assim era ela. Tentei ser durona, mas torcia pra ficar em casa sozinha, pra podermos brincar em paz. Mas também, quem pode resistir a um bebezinho… Lembro ainda em Brasília, quando meu irmão levou um filhote de coruja pra casa e guardou em sua gaveta de cuecas. Descobrimos com um grito de mamãe, que deu de cara com uma coisa “zoiuda” e assustada. Corremos pra ver. Penugem estranha, a caminho de ser asa, desengonçada, esbugalhada, mas, mas… QUE GRACINHA! E não foi sem chororô que libertamos aquele amor de criatura. Imaginem um pequeno siamês, como evitar? Os cachorros curiosos entenderam que ela ia ficar e que, principalmente, estava protegida pela chefe da matilha. Foi a duras penas que entendi que aquela alegre canção, “nós gatos já nascemos pobres, porém, já nascemos livres”, não passava de pura verdade. Ela um dia sumiu. E por morarmos numa casa, isso foi bem fácil. Fiquei indignada. Como? Que traição! Meus cães nunca me abandonaram assim. Foram 20 dias. Um belo dia, do nada, lá estava ela no muro. Bradei de novo, jurei que não me apegaria, que nem olhar pra ela eu queria mais. Botei uma coleirinha com seu nome e o telefone da casa. Sumiu de novo… Dias depois, toca o telefone: Por favor, Dona Doralice está? É que a gata dela está aqui na minha casa. Lá fui eu, pegar Dona Doralice na casa alheia.
“Eu prefiro viver tão sozinha
Ao som do lamento do meu violão…”
E foi ficando. Vez em quando dormia fora, mesmo depois de ser castrada e já ter tido uma filha, que acabou ficando também.
Certa feita, passa um vizinho lá da frente e a cumprimenta, bom dia, princesa! Eu sorri, ela se chama Doralice! E ele: Pra você, né? Lá em casa é Princesa! Vida dupla, esfregada na minha cara!
Mas o fato é que ela era mais minha do que do mundo todo, que também a tinha. Viu minha vida virar do avesso algumas vezes. Me viu muito feliz também. Teve ódio de mim, quando outro cachorro chegou. Levou um presente enquanto eu lia em cima da cama. Ela subiu com um miado esquisito, eu não conhecia nada de gatos. Parou pertinho de mim, abaixou a cabeça e abriu a boca. Uma barata meio tonta começou a rodar em cima do lençol. Pulei, gritei, só não cantei. Me disseram depois, que gatos trazem presentes e comida. Mas não me chamo GH nem nada… não tô com fome, Doralice, e se estivesse, iria atrás de minha própria caça, combinado?
A barriga mais enxuta e macia da casa. Gostava de deitar de barriga pra cima e que um escravo a acarinhasse. Sim, gatos mandam até nos que se acham mais mandões, como eu. E os siameses tem um miado 360 graus. M I A UUU. Reclamam, exigem. E cá pra nós, são adoráveis. Depois dela, convivi com alguns gatos e passei a olhá-los de outro modo, embora seja cachorreira. Doralice é a gata mais carinhosa e chameguenta da história do meu país. Meu gatorro…
Quando mudei de casa, ela simplesmente se negou a acompanhar o cortejo. Sua filha, Ritinha, entendeu logo, os cachorros, nem se fala, mas ela não se conformou. Como era no mesmo bairro, eu trazia, ela voltava, eu trazia, ela voltava. Desisti, temporariamente, pra ver o que acontecia. Ela não voltou. Eu pedia pra alguém ir lá ver se ela estava sendo cuidada pelo tal vizinho. Um dia fui até a antiga casa, entrei na sala vazia e presenciei uma das cenas mais devastadoras, lá estava ela teimosa, solitária. Me viu e M I A UUU. Chega. Levei, botei numa coleira, por uma semana, presa num quarto. Revolta, olhares ameaçadores e… entendeu, ficou. Sacou que a vida tava boa de novo. Passou a me seguir o dia inteiro, a ponto de eu ter que fechar a porta do quarto, para ter privacidade. Ela se escondia dentro do armário, resolvia sair de madrugada e quase me matava de susto.
Doralice partiu nessa primavera machona, com bafos de verão, desse ano sombrio que tem sido 2015. Dezesseis anos depois, no meu colo. Choro. Logo eu, que sou cachorreira.
“E agora, amor, Doralice, meu bem
Como é que nós vamos fazer?”

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