segunda-feira, 2 de novembro de 2015

LANcaster, LanCASter ou LancasTER?



 Lancaster, maio de 2009.

Domingão foi dia de sol. Coloquei um vestidinho, blusa fina por baixo, bota, casaco jeans. Levei um cachecol, meu escudo protetor contra o vento. Saí para ir a um parque nacional, lindo, bem perto daqui de Lancaster.
Lá fui, toda contente. Logo no início do percurso percebi a dureza do vento. Tudo bem, eu pensei, vou seguir adiante, o dia está começando e o sol vai esquentar. Tomei dois trens - sempre rodeada de indianos - falo deles em outra oportunidade. Cheguei no lugar onde fica o parque, com um belo e enorme lago, lindas casas, ladeiras, bares, cafés, muita gente na rua. Havia gansos perto do porto, gansos enormes.
Entrei num dos barcos, câmera fotográfica na mãos, pronta para registrar tudo!! Mal o barco começou a se mover, o vento, o maldito vento no dia de sol, abriu o seu saco de maldades e começou a nos açoitar, a todos, aos indianos inclusive, todos sem distinção! Perdi o contato com as minhas mãos, orelhas e nariz! O vento se insinuava por dentro dos meus ouvidos e antes que ele atingisse seu objetivo - que imagino era me deixar surda - entrei na parte fechada do barco. Lá permaneci, buscando nesgas de sol. Do lado de fora, a paisagem era linda, belos pássaros, muito verde, o céu todo azul, barcos no lago. Fiquei enrolada no cachecol durante todo o percurso, buscando de novo o contato com as partes perdidas do meu corpo, atacadas pelo vento.
Consegui tirar fotos!
Na volta, decidi pegar um ônibus. Eu havia lido num dos milhares de folhetos que tinha nas mãos que o ônibus 555 fazia o trajeto Windermere (onde eu estava) - Lancaster (para onde eu ia). Como eu não tinha muita certeza disso e era impossível achar de novo a informação correta nos milhares de folhetos e outros papéis que eu carregava, resolvi perguntar ao motorista: Is this bus going to Lancaster?
E foi aí, com esta pergunta que me parecia simples, que tudo começou. Ao ouvi-la o motorista, sentado em seu banco, de frente para o volante do ônibus, chegou o corpo todo para trás, buscando me olhar de outro ângulo. E disse: What? Repeti a pergunta, segura do meu inglês! Is this bus going to Lancaster? E ele se movia sentado no banco, buscando outras perspectivas para me ver, como se me ver de outros ângulos fosse tornar mais compreensível para ele o que eu lhe dizia! Eventualmente ele movia o corpo na minha direção, me investigando até os pés.  Que diabos de inglês eu falo??? foi o que pensei! Não consigo me fazer entender com uma pergunta que aprendi no Jardim de Infância do Curso de Inglês que fiz no Brasil por 15 anos! Repeti : Lancaster!, depois,  falei mais alto: LANCASTER!  E nada, o motorista, me olhando, me escaneando, virou inteiro um gigantesco ponto de interrogação!! Eu já não sabia nem como era a cara dele, só via aquele ponto de interrogação - what are you saying?. Tentei mudar a sílaba tônica, quem sabe era isso. Tentei: LANcaster?, depois: LanCASter? ou ainda: LancasTER??  Nada, o homem ficava em silêncio, naquele vai e vem com o corpo, sem entender o que eu dizia!! E eu? Bom, virei um hamister, uma pulga, uma joaninha, ou algo ainda menor! Em minutos, eu, pesquisadora brasileira, professora de universidade pública, doutora,  era um hamister jogado no chão, sem conseguir me comunicar com ninguém! E o motorista, aquele gigantesco  ponto de interrogação que se movia e que me inquiria: o que dizes? Jogada no chão, lancei um triste olhar para dentro do ônibus e notei que nele havia um grupo de rapazes, sentados bem na frente e que assistiam aquela cena de aflição em que eu, o hamister, me encontrava! De repente, os rapazes, percebendo o que se passava, gritaram em coro: Lancaster! She is going to Lancaster!!!! Quando eu ouvi aquilo, cresci de novo, foi como Ronaldo, o Fenômeno, desacreditado, quebrado, aniquilado, entra em campo e marca dois gols para o Corintians! Saiu de campo um herói, seu sorriso farto e feioso estava em todos os jornais do dia seguinte, uma glória! Sim, eu era Ronaldo, o Fenômeno!! E os rapazes, a torcida do Corintians! Lancaster, she is going to Lancaster!!! Lancaster, she is going to Lancaster!! Goooooooooooooooolllllllllllllllllllllllllllllllllll!!!!!!!! Eles me entenderam! De hamister a Ronaldo, Fenômeno!!! Isso era o que se passava comigo. Nada mais me interessava, não me importava para onde ia aquele ônibus, que fosse aos quintos dos infernos, o que importava era que acabava de recuperar minha alma, enorme, Ronaldo, o Fenômeno, isso, brasileira, pesquisadora, doutora!! Nada mais de hamister, joaninha, pulga. Saltei do ônibus naquela euforia de Ronaldo indo vitorioso para o vestiário! Que me importava o ponto de interrogação, alguém havia me entendido, logo marquei os gols, voltaria para Lancaster (ou LANcaster, ou LanCASter, ou LancasTER, o que fosse...) de trem, com meu cartão de descontos. Pronto, tudo resolvido. E lá fui, de volta para a estação de trem, pensando naquilo tudo, com minha alma enorme, a torcida do Corintians no meu coração me dando força, firme, pesquisadora, doutora! Formulava opções para o ocorrido, mas não sabia bem qual delas eu devia marcar:
a- o motorista era surdo
b- o motorista não falava inglês
c- o vidro que me separava do motorista - havia um vidro entre nós - era blindado, fabricação israelense, poderosíssimo, resistente a tiros de canhão, bombas, mísseis e a perguntas.

As opções rodavam na minha cabeça enquanto eu tamborilava os dedos nos joelhos. A estas alturas eu já estava no trem de volta, rodeada de indianos. Subitamente, minha alma grande, de Ronaldo,  o Fenômeno, foi tomada de assalto por um gênio malvado que insistia em colocar outra opção na lista acima. O gênio malvado havia se juntado com o motorista ponto de interrogação e os dois juntos eram muito malvados! Eu ali, Ronaldo, com o torcida do Corintians, lutando para não deixar os dois colocarem a tal da opção (d) na lista que eu havia feito. Mas, eis que PIMBA!  Eles conseguiram!

d- seu inglês é sofrível, você é um hamister.

Cheguei em Lancaster à noite, voltei para o meu quartinho, na certeza de que entre um dia e outro há sempre uma noite. Vesti meu pijama de flanela, meias de lã, lancei-me debaixo dos macios edredons e fiquei ali, esperando o outro dia chegar, com outras batalhas, outras histórias! Ronaldo, o hamister, o gênio malvado, o motorista ponto de interrogação, a torcida do Corintians estariam comigo no dia seguinte? Dormi quietinha.

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