sábado, 14 de novembro de 2015

Psicanálise da vida cotidiana ou das empadas e do contemporâneo


21 de outubro de 2015.

Moro num bairro onde são vendidas as melhores empadas de todo o universo. Aqui em casa o final de semana é aguardado em função das empadas. Logo logo será sábado e já sei que iremos na esquina, onde ficam as duas carrocinhas à lenha, para saborear aquelas iguarias. O volume de apreciadores é grande. Se o freguês quiser uma aberta de queijo é preciso chegar mais cedo, porque estas, pelo visto, são o grande hit parade: acabam antes das dez horas. Algumas vezes abro mão das abertas de queijo em prol de umas horinhas a mais de sono, já que é direito de todo trabalhador dormir até mais tarde no final de semana. Disso custo muito a me desprender. Na defesa do sono, opto por comer empada de carne seca. Ah! Um detalhe que faz toda a diferença é que o recheio de azeitona não inclui o caroço, o que garante segurança e tranquilidade total. Comemos a empada no maior relax, sabendo que nossos dentes serão preservados de qualquer choque mais violento! Sentamos nuns banquinhos que ficam na esquina ou mesmo pela calçada. Ali comemos nossa empada de cada final de semana, sabemos das notícias do bairro, encontramos a azeitona pacífica, olhamos uma ou outra criança-parceira de paladar a degustar a empada fazendo gracinhas e falando tatibitati. A empada é um acontecimento nas nossas vidas. Eis que um dia lá estávamos a degustar nossas empadas. Estávamos felizes por nós, pelas empadas, pelas azeitonas sem caroço, por aquele delicioso happening da manhã do sábado, pelo simples que é comer com prazer, por tudo isso, pelas crianças-parceiras, pelo sol, estávamos felizes com nossos dedos sujos de farinha. A esquina das empadas é um ponto de encontro e neste dia não foi diferente. Enquanto comíamos fomos cumprimentados por uma moradora do bairro. Cumprimentados é modo de dizer, fomos atacados. Sim senhor, atacados. A moradora passa por nós, olha com olhos de repreensão - deve ter pensado qualquer coisa de horrível a nosso respeito - e dispara: Que bomba calórica hein???!!! Bomba virei eu!!! O que é isso, gente? Um casal que se ama não pode mais comer uma empada? Gente, uma empada? Afff que saco, criminalizaram a farinha branca, o gluten, a carne seca, a azeitona com e sem caroço! Criminalizaram a empada! Fiquei indignada. Falei com meu nego que aquilo não era possível, não era. Pessoa mal educada. Não perguntei nada a ela sobre bombas calóricas, empadas, nada. Mal educada, pronto. O nego psicanalista-para-todas-as-horas, vendo-me na situação aflitiva e irada, manda essa: Marcia, ela não falou isso conosco não. Era com ela mesma. Olhei para o nego: Oi? Que com ela mesma, dá onde você tirou isso? Ela falou conosco, direto e reto. Ele explicou lá umas coisas, era com ela mesma, falou aquilo para ela, nós fomos só uma ocasião e seguiu a desfiar uma psicanálise de quinta categoria, aprendida possivelmente com um analista de bagé pacificador. No meio disso sacou referências sobre a questão da saúde no contemporâneo, o mal estar, a biopolítica, Agamben e não sei mais o que... Ouvi aquilo tudo mais do que indignada, retomei: nego, pára de inventar, a coisa é simples, figura mal educada aquela lá, bora gritar aí para meio mundo que a gente come empada sim senhor, às favas quem criminaliza a empada! O psicanalista riu de mim, carinhosamente tirou com a mão um pedacinho de farinha branca que tinha ficado no meu queixo, trocamos umas bitocas e seguimos adiante, na espera do outro final de semana e da próxima empada.

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