segunda-feira, 2 de novembro de 2015

No mundo encantado de Wendy

Lancaster, maio de 2009.

Cheguei para a aula de inglês. Logo procurei a professora, Wendy. Ela não havia chegado. Entrei na sala e dei de cara com uma moça jovem, deve ter uns 30 anos. Magrinha, cabelos até os ombros, lisos e castanhos, ela arrastava mesas de um lado para outro, arrumando a sala para a aula que em breve se iniciaria. Estava sozinha nesta tarefa.  Assim que coloquei os pés na sala ela me olhou, olhos grandes, arredondados e azuis, apontou para as mesas me convocando ao trabalho. E disse:
Me - RRRRRSSSSSSHHHHHH - foi o que eu ouvi.
E em seguida:
You?
Logo entendi que devia dizer meu nome e que aquele som estranhíssimo que ouvi antes era o nome dela. Apressei-me a dizer: Marcia
E ela:
Me cantrrrrrry RUSHA. You?
E eu : Brasil
Os olhos grandes dela brilharam!! Parecia que ela tinha concluido algo relevante! E falou:
You language spanish!!!!
E eu : No, I speak portuguese. In Brazil we speak portuguese!
Os olhos dela crisparam numa interrogação louca e ela volta a falar:
Ah, me - aponta o dedo para a cabeça como quem quer dizer que pensa , e continua - Sauty Amerrrrrrrrica language all spanish.

Logo chegam outras pessoas: 4 egipcias, uma vietnamita, uma mulher de Kosovo, duas coreanas! Uma fauna bizarra de línguas, culturas, cada uma com um inglês todo peculiar! Ah, e claro, ali estávamos também a russa e eu!

Chega Wendy, que com certeza vinha de um encontro com Peter Pan. Meio gordinha, cabelos longos, ruivos, cheios e bem cacheados, Wendy tem sardas e está sempre sorrindo. Descobri que ela possui o dom de entender qualquer idioma, inclusive aquele inglês esquisito que cada uma de nós falava!

Wendy pergunta o que fizemos no final de semana. Cada uma vai falando e chega a vez da russa. Ela não entende a pergunta e seus olhos ficam cheios de angústia - um misto de quem quer falar alguma coisa com quem quer entender o que é dito. E todas começam:
Yesterday !
Nada.
Outra tentativa: Today! E Wendy toma a frente: Today! Aponta com o dedo para o chão!!
The day before today - mãos movendo-se para trás - BE-FORE!! BE-FORE TO-DAY. Yesterday!
Depois de várias mímicas, recursos de toda sorte, desenhos no quadro, eis que os olhos azuis da russa ficaram calmos e, ao mesmo tempo vibrantes: AH, yesterrrrrrrrrrrrrrrday!!!!!!
E lá vai ela falar o que fez no final de semana, ou ontem, no passado recente, isso ela entendeu e é o que basta.
Antes porém de falar, a russa folheia furiosamente um pequeno caderno no qual toma notas. Caderno que me pareceu minúsculo para tudo o que eu achava que ela deveria anotar!! E as anotações me pareciam desodernadas. Ela escreve com lápis de desenho, ponta grossa, pretíssimo. Assim, cada palavra que ela anota no caderninho, borra umas cinco ou seis folhas para trás!! E ela toma nota das palavras novas, logo YESTERDAY foi ali introduzida. Virando para lá e para cá as páginas daquele caderninho, folhas  borradas, tudo escrito com letras que tinham o mesmo formato dos seus olhos, ela vai catando as palavras! E as encontra, eis os surpreendente!!!!
Carrrrrrrrrrrr, ela diz!!
Me carrrrrrrrrrrrrrrrrrr, me carrrrrrrrrrrrrr!! carrrrrrrrrrrrrrrrr grrrrrrrrrreennnn! Agora nós ficamos atônitas! É um jogo de adivinhação! Cada uma faz uma tentativa:
Passeou de carrro!!!
Viu um carro!!!!
E a russa introduz um gesto:
Me - estica o braço para longe do corpo e o puxa para perto do peito - e em seguida :carrrrrrrrr grrrrrrrrrrrrrennnnnn !!
E nada! Até que a fada Wendy conclui:
You bought a green car!!
YESSSSSSSSSSSSSSSSSSSS!!!!!!! Ela comprou um carro verde!!!
Me my rrrrusbandi - Sim, ela e o marido!!! Compraram um carro verde!!!!

E assim segue a aula, uma nau com animais esquisitos conduzidos pela fada Wendy, generosa, sorridente, a todos ensinando os mistérios desta língua inglesa, entendendo, fazendo gestos e mímicas!

No final daquele encontro concluo que a russa é na verdade um ser único: um gênio, eu diria. Ela está na Inglaterra há 3 semanas, não fala nada de inglês e se comunica!!!! Aos tropeços, olhos sempre atentos, gestos, mímicas, palavras de outras línguas - ela fala italiano e introduz umas palavras neste idioma no meio das conversas - as notas no caderninho, tudo aquilo vai criando um mundo entre nós.

Saio da aula cheia de admiração. E certa de que neste mundo enorme, vasto, diverso, cada um de nós não é mais do que um ínfimo grãozinho de areia. O que a gente faz todo dia é isso, criar com sucatas nossos pequenos, fragéis e deliciosos mundos comuns!

Nenhum comentário:

Postar um comentário